sexta-feira, 5 de maio de 2023

Uma reflexão sintática

Bom dia, meus queridos leitores! Se é que sobrou algum depois de tanto tempo da última publicação... Bom, também não faz tanto tempo assim. A última publicação foi no dia 3 de fevereiro deste ano, três meses, até que não é tanto para quem não tem tempo nem de se coçar, hiperbolicamente falando.

Mas vamos ao que interessa. Hoje não vou começar com aquele lengalenga de que eu tive um insight (mas que eu tive, isso eu tive). Estava revisando a tradução que fiz de um artigo acadêmico, quando observei pela enésima vez um fenômeno sintático que chama muito minha atenção. Trata-se de uma mudança de colocação que ocorre no espanhol em relação ao português.

Vamos por partes:

— Todo mundo sabe o que é uma oração subordinada adjetiva restritiva? 


Refrescando a memória... uma oração subordinada adjetiva restritiva é aquela que traz uma informação específica sobre o substantivo ao qual se refere. Na prática, exerce o papel de adjunto adnominal porque acompanha, qualifica e especifica o substantivo ao qual se refere.

Exemplo: Os livros que falam de amor são pouco realistas.

Estou afirmando que todos os livros são pouco realistas? Não, estou especificando. Somente os livros que falam de amor. Por isso é restritiva, porque restringe essa qualificação a um elemento ou a um grupo.

Esse tipo de orações são introduzidas por pronomes relativos (que, quem, onde, qual, quanto, cujo, etc.). Neste caso, vamos falar das introduzidas pelo pronome relativo “que”. Mais especificamente daquelas que indicam uma ação praticada por um sujeito sobre o objeto ao qual se refere.

Calma, gente. Vamos ver na prática.

O bolo que o confeiteiro fez ficou muito bom.

O brinquedo que o pai comprou fez muito sucesso.

O documento que o funcionário assinou é sua contratação.

O gol que o Ronaldo marcou decidiu o jogo.

 

Assim não parece tão complicado, não é mesmo? A oração subordinada adjetiva restritiva está formada por um sujeito que pratica uma ação que recai sobre o objeto ao qual se refere. Até aí tudo bem?

Agora vamos ver essas mesmas frases em espanhol:

El pastel que hizo el pastelero ha quedado muy rico.

El juguete que compró el padre tuvo mucho éxito.

El documento que firmó el empleado es su contratación.

El gol que marcó Messi decidió el partido. (tradução domesticadora, trocou Ronaldo por Messi... hehehe)

Essa é a forma habitual de construir tais frases em espanhol. Perceberam a diferença? Na construção em espanhol o verbo antecede o sujeito que o pratica.

Vejamos uma construção na voz passiva:

O muro que foi construído pelo pedreiro caiu.

El muro que construyó el albañil se cayó.

 

Em espanhol, ao menos no espanhol europeu, é preferível o uso da voz ativa, soa mais natural.

Mas a questão não é essa, a questão é que, como não estamos habituados a ver o verbo antes do sujeito nesse tipo de construção, podemos errar na interpretação e traduzir de forma errada para o português.

Agora, sim, chegamos ao ponto:

“El oso que mató el cazador”

Se analisarmos essa construção de forma isolada, sem contexto, fica difícil identificar o assassino. Quem matou quem? Não é mesmo?

Foi o urso que matou o caçador ou o caçador que matou o urso?

Resposta: Foi o caçador que matou o urso.

Como sei disso?

Porque do contrário a construção correta seria:

El oso que mato al cazador

Lembram que no espanhol é obrigatório o uso da preposição “a” antes de objeto direto de pessoa? (“al” é a contração da preposição “a” com o artigo “el”).

Logo, se o caçador é o objeto, é ele quem sofre a ação. Neste caso, quem se deu bem foi o urso.

Em português não teríamos essa ambiguidade porque diríamos de outra forma, provavelmente usando a voz passiva. “O caçador que foi morto pelo urso”. Uma construção bem mais clara, diga-se de passagem.

Claro que geralmente o contexto desfaz a ambiguidade, se eu dissesse “El oso que mató el cazador es un animal en extinción”, o problema estaria resolvido. A questão é que num momento de distração, após muitas horas de trabalho, podemos cometer um deslize, por isso devemos ficar atentos a esse tipo de construção.

Vejamos outro exemplo:

El león que mató la gacela.

 

Embora nossa intuição nos diga que foi o leão que matou a gazela, porque ela é mais fraca, não temos como fazer essa afirmação com 100% de certeza.

E se a frase fosse:

El león que mató el tigre.

 

E agora? Os dois são fortões...

Nesse caso, em espanhol, usamos a preposição “a” diante do objeto direto (ainda que não seja de pessoa) para desfazer a ambiguidade:

El león que mató al tigre.

 

Novamente, no português não teríamos esse tipo de problema porque certamente usaríamos uma construção passiva do tipo “O tigre que foi morto pelo leão”.

Interessante, não é mesmo?




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