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quarta-feira, 10 de julho de 2024

Olhos de... olhar...

            Hoje, como um urso que sai de sua toca após um longo período de hibernação, acordei com uma ideia para um artigo sobre um assunto que me fascina bastante em matéria linguagem: a relação entre texto e imagem.

Lembrei de uma das aulas que mais marcou minha formação acadêmica. Fazia parte da disciplina Literatura e Cinema; uma aula que discorreu sobre a relação entre o sentido da visão e a realidade. Se não me falha a memória, esse era o xis da questão. A professora falava da necessidade de ver para acreditar, de como o cinema recria a realidade e a transforma ou a deturpa, e dos efeitos que as imagens produzem em nós. Enquanto o cinema se vale da estética da imagem, a literatura se vale da linguagem, e o leitor reconstrói, através de sua imaginação, uma imagem visual daquilo que está sendo descrito e narrado. Por isso a leitura é uma experiência tão singular, porque cada leitor constrói sua imagem particular, enquanto na tela do cinema todos os espectadores veem a mesma cena.

Naquela ocasião, a aula começou com um repertório de ditados e provérbios relacionados à visão:

Vi com esses olhos que a terra há de comer” e  vi com meus próprios olhos”, duas frases que dão conta do poder da visão como testemunha inquestionável da realidade.

Por outro lado, “o que os olhos não veem o coração não sente”, provérbio geralmente relacionado ao adultério e que traz a ideia de que enquanto não houver um flagrante de infidelidade haverá felicidade, que por extensão aplicamos a outras situações, como, por exemplo, à forma como uma comida é preparada... Se a comida é gostosa, mas a higiene de sua preparação é duvidosa, usamos essa frase para afirmar que, se não vemos algo desagradável, não sofremos por isso.

Olho por olho, dente por dente”, para transmitir a ideia de vingança, de fazer justiça retribuindo um mal com outro.

Em terra de cego, quem tem um olho é rei”, que afirma que num ambiente onde a maioria das pessoas tem limitações, mesmo uma pequena vantagem pode fazer uma grande diferença.

Os olhos são a janela da alma”, significa que os olhos revelam os sentimentos e o caráter de uma pessoa.

Depois desse compilado de frases que nos mostrou o peso do sentido da visão em nossa cultura, falamos de sua relação com a percepção da realidade. Lembro que comentei com a professora que eu havia assistido a um filme espanhol — El orfanato —, um filme de suspense em que a protagonista tinha visões sobrenaturais, e, num momento dado, uma médium explica: “No se trata de ver para creer, sino de creer para ver”, que sugere que é preciso estar predisposto para ver além do óbvio. Ou seja, o que vemos está condicionado a nossas crenças.

Como se tratava de uma disciplina sobre literatura e cinema, assistimos ao filme Blow-up, dirigido por Michelangelo Antonioni em 1966, que é uma adaptação do conto Las Babas del Diablo, escrito por Julio Cortázar em 1959. O protagonista é um fotógrafo que captura as imagens de um casal discutindo num parque, e, ao revelar as fotos, percebe algo suspeito e resolve investigar. Tanto o conto como o filme podem ser interpretados como uma metáfora sobre o poder de congelar momentos tanto por parte do escritor como do fotógrafo, a relação entre realidade e fantasia, sobre enxergar apenas o que queremos ver. E ainda, sobre como o escritor pode participar ou intervir nos fatos.

A respeito dessa relação entre texto e imagem, escrevi também aqui no blog uma resenha do filme “Por falar de amor” (em inglês, Words and Pictures), no qual o ator Clive Owen interpreta um desiludido professor de literatura a ponto de perder o emprego, que decide desafiar a professora de arte e pintora, interpretada por Juliette Binoche, a travar uma disputa entre os alunos de ambos para ver quem consegue transmitir um significado maior: as palavras ou as imagens. Para ler essa resenha, clique aqui.

Enfim, a presença do sentido da visão, dos olhos e do olhar é uma constante em nossa cultura, há diversos exemplos, como o da tragédia grega Édipo rei, que culmina com Édipo furando os próprios olhos como punição por não ter conseguido driblar seu destino. Ou o mito da Medusa, uma mulher amaldiçoada da mitologia grega que transformava em pedra todo aquele que olhava diretamente para ela. Temos também o mito da caverna de Platão, que faz uma alegoria à visão além das aparências. O conto de E.T.A. Hoffmann, O homem de areia, uma narrativa fantástica sobre uma figura sinistra que roubava os olhos das crianças que não iam para a cama, história serviu de inspiração para muitas outras criações. Não somente a visão, como também a falta dela são temas presentes na literatura, como é o caso do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. São temas que povoam nosso imaginário e se cristalizam em crenças populares como o mau-olhado ou olho gordo, que atribuem desgraças ao olhar invejoso de alguém, tradicionalmente associado à ideia de “secar com os olhos”. O assunto é inesgotável, mas não posso deixar de citar a sábia frase do nosso querido pequeno príncipe: “O essencial é invisível aos olhos”.

Neste momento, estou relendo Memórias póstumas de Bras Cubas, e não pude deixar de lembrar de uma das figuras metafóricas mais bonitas de nossa literatura, em Dom Casmurro, quando Bentinho se refere ao olhar de Capitu como “esses olhos de ressaca”. Cabe aqui uma anedota... Quando li o livro pela primeira vez, meu português era ainda muito incipiente, e eu muito nova para a magnitude da obra, o que me levou a pensar nos olhos da pessoa que está de ressaca pelo consumo excessivo de álcool: a visão dupla e embaçada, as olheiras em volta dos olhos. Mais tarde, pude captar o verdadeiro sentido da metáfora: o do olhar com a força do mar que arrasta tudo para si durante a ressaca. Referindo-se ainda ao olhar de Capitu, o agregado da família de Bentinho, José Dias, disse: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, ou seja, um olhar malicioso, enigmático e traiçoeiro.

Quanto a outro assunto que também me fascina, o léxico, toda essa reflexão despertou minha vontade de compilar uma lista de adjetivos que qualificam o substantivo “olhar”, para convertê-la em uma nuvem de palavras. Eis o resultado:


Uma nuvem de palavras é uma representação gráfica da frequência e do valor de uma palavra numa determinada fonte de dados. Neste caso, não há uma relação de hierarquia, pois o objetivo foi simplesmente criar um material de consulta para usar naquele momento em que procuramos um adjetivo que qualifique com precisão o “olhar” que queremos descrever.

Por hoje é só! E, pra vocês, eu deixo apenas meu “olhar 43”.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Tradução e tipologia textual


Você traduziria da mesma forma uma bula de remédios e um romance?

Certamente não. Em nosso dia a dia recebemos pedidos de tradução dos mais diversos:  manuais técnicos, artigos acadêmicos, resenhas turísticas, cardápios, contratos, legendas, aplicativos, literatura, etc.

Cada texto tem suas características, linguagem e estilo próprios, público-alvo, terminologia. Então é razoável que apliquemos estratégias e abordagens diferentes conforme a tipologia textual.

Vejamos algumas questões que devemos levar em conta:

Textos técnicos

Funções predominantes: referencial, pelo seu caráter informativo, denotativo e explicativo.

Linguagem: caracteriza-se pelo conhecimento especializado, uso de jargões e estrangeirismos, é objetiva, descritiva, impessoal e instrucional.

Exemplos de texto técnico: manuais de usuário, de instalação e operação, descritivos técnicos, relatórios, laudos, patentes, etc.

Competências tradutórias: raciocínio lógico, processamento e síntese da informação, espírito investigativo, objetividade, precisão, clareza, uniformidade e consistência. Também é preciso que o tradutor conheça suas limitações e saiba recusar um trabalho quando não se sente apto.

Imagine um profissional que precisa operar um equipamento complexo, como um respirador. É crucial que as instruções sejam o mais claras e simples possível, de forma a eliminar o risco de uma má interpretação que possa colocar em risco a vida do paciente.

Tradução: literal na maioria dos casos, mas dinâmica em alguns momentos para tornar o texto mais claro, por exemplo em instruções; é funcional e utilitária pois têm em vista o usuário e pretende ajudá-lo a usar alguma coisa da melhor forma.

Textos científicos

Funções predominantes: informativa, referencial.

Linguagem: formato mais rígido: o rigor, a precisão e a coerência devem contribuir para alcançar um resultado elegante.

Exemplos de texto científico: trabalho acadêmico (teses, monografias, artigos, etc.).

Competências tradutórias: conhecer a redação acadêmica, saber como proceder na tradução de citações e referências bibliográficas, quais elementos devem ou não ser traduzidos; espírito investigativo, coerência, precisão e clareza. Quando se traduz diretamente para o autor, requer capacidade de reorganizar e sintetizar as ideias, capacidade de negociação e tato para convencer o autor a fazer as modificações necessárias.

Tradução: literal, também é funcional pois tem em vista divulgar conhecimento, estudos para a comunidade acadêmica e científica.

Textos turísticos

Funções predominantes: além da função referencial, prevalecem as funções conotativa e emotiva, pois o objetivo é convencer o leitor a fazer uma viagem ou passeio, viver uma experiência.

Linguagem: persuasiva, descontraída, informal. Geralmente usa verbos no imperativo (conheça, visite, experimente, contrate, etc.), predomina o texto descritivo, rico em adjetivos convidativos (paisagem cinematográfica, água cristalina, natureza exuberante, ambiente acolhedor, etc.). Apresenta termos intraduzíveis, regionalismos. Descreve percepções sensoriais: sabores, cheiros, cores e texturas.

Exemplos de textos turísticos: guias, resenhas, sites, revistas especializadas, etc.

Competências tradutórias: boa bagagem cultural, desejável conhecimentos de geografia e história, capacidade de explicar brevemente termos intraduzíveis, regionalismos. Saber o que se deve ou não traduzir nesse tipo de textos, como lidar com topônimos e localismos, por exemplo, sem descaracterizá-los.

Tradução: mais livre e criativa, funcional, pois pretende convencer o leitor a viver uma experiência.

Textos institucionais

Funções predominantes: referencial, emotiva e apelativa (quando pretende engajar o funcionário).

Linguagem: faz parte da identidade e reputação da instituição, esse tipo de texto requer uniformidade de estilo e consistência terminológica. A comunicação interna geralmente é mais informal, pois o objetivo e engajar os funcionários. Já a comunicação externa é mais formal, pois pretende estabelecer a reputação da empresa, ganhar a confiança do cliente e estabelecer um vínculo.

Exemplos de textos institucionais: comunicados, atas, políticas organizacionais (anticorrupção, de gestão de riscos, de segurança da informação, etc.).

Competências tradutórias: visão sistêmica da instituição, desejável ter noções de comunicação organizacional pública e privada. Ter sempre em mente o público-alvo.

Tradução: tradução literal no caso de normas, políticas e diretrizes e livre ou criativa em casos específicos. O ideal é que cada instituição/empresa conte com um guia de estilo para o tradutor, que estabeleça diretrizes e preferências. O tradutor pode dar sugestões, desde que bem justificadas, mas, em regra, prevalece a preferência do cliente.

Textos literários

Funções predominantes: poética ou estética, ou seja, a ênfase recai no próprio texto.

Linguagem: subjetiva, conotativa, caracteriza-se pela presença de metáforas, recursos de estilo, diálogos. Em poesia, há rima, cadência, estrofes, versos, etc.

Exemplos de texto literário: livros de ficção, contos, romances, crônicas, poesia, etc.

Competências tradutórias: por ser um objeto estético, o tradutor deve ser capaz de reproduzir, na medida do possível, os efeitos do original e fazer que os diálogos soem naturais, verossímeis. É muito desejável uma boa bagagem de leitura e de conhecimentos gerais para que ele seja capaz de identificar as referências literárias e culturais presentes na obra. Requer extrema fidelidade e respeito ao original, já que o livro é a voz do autor, suas impressões, reflexões e emoções. O tradutor não deve perder de vista o caráter servil do seu trabalho, seu papel é produzir um texto o mais próximo possível do original, de maneira que o leitor possa dizer que leu tal autor sem faltar à verdade.

Tradução: tão fiel quanto possível. Criativa em ocasiões muito específicas para resolver problemas tradutórios, não para introduzir modificações aleatórias.

Textos publicitários

Funções predominantes: conotativa, emotiva e semiótica, pois elabora representações, envolve signos e símbolos.

Linguagem: persuasiva, apelativa, informal, lúdica, criativa, envolve elementos visuais, sonoros.

Exemplos de texto publicitário: campanhas publicitárias, slogans, lançamentos, etc.

Competências tradutórias: criatividade, imaginação, noções de marketing, semiótica, localização (adequação ao mercado de destino), boa bagagem cultural. O tradutor deve ter em mente o público-alvo, bem como questões éticas que possam colocar em risco a reputação da empresa ou produto. Deve tomar cuidado para não usar termos politicamente incorretos e estar atento a aspectos culturais, pois alguns termos ou expressões podem resultar ofensivos em outras culturas.

Tradução: altamente criativa e funcional, pois o objetivo é vender uma imagem, produto ou serviço.

Textos jurídicos

Funções predominantes: assim como no técnico, predominam as funções referencial e informativa.

Linguagem: formal, técnica, rígida. O texto jurídico tem valor legal, público, no sentido de estabelecer normas, condições, obrigações. Apresenta muitos jargões e vocabulário especializado.

Exemplos de texto jurídico: contratos, certidões, leis, sentenças, editais, etc.

Competências tradutórias: redação técnica, conhecimento técnico de aspectos e conceitos legais, do sistema jurídico, além de exigir familiaridade com o "juridiquês", isto é, aqueles jargões e expressões específicas, muitas vezes arcaicos e excêntricos que dificultam consideravelmente a trabalho do tradutor.

Tradução: literal na maioria das vezes, criativa quando é necessário adaptar conceitos legais. Também é funcional porque deve ser eficaz e cumprir seu objetivo.

Limitei-me a abordar os tipos de texto que traduzo com mais frequência, mas há muitos outros mais (legendas, localização, jogos, notícias, etc.). Cada um com suas particularidades.

Textos relacionados:

Como validar terminologia especializada

Tradução literária

Tradução de textos turísticos

sábado, 17 de outubro de 2020

O que se considera um erro de tradução?


Todo tradutor profissional deve prezar pela qualidade do seu trabalho, mas, quando ainda se está no início de carreira, é comum sentir insegurança e duvidar da própria capacidade. Afinal, há muita ansiedade por conseguir a primeira oportunidade, mas, ao mesmo tempo, há o medo de ser reprovado no teste e ver a grande chance ir embora.

Há muitos textos que falam sobre as qualidades de uma boa tradução, eu mesma já publiquei  vários aqui no blog.

Basicamente, estas são as qualidades que uma boa tradução deve ter:

  1. fidelidade, fluência e naturalidade;
  2. precisão, coerência e correção gramatical;
  3. uniformidade e consistência terminológica;
  4. padronização de estilo.

Muito bem, conhecemos a nossa meta, mas, como chegar lá? O que se considera um erro de tradução?

Sabemos aonde queremos chegar, mas precisamos de parâmetros que possamos aplicar na prática para produzir um trabalho de qualidade.

Você já deve ter ouvido por aí que não existe uma tradução única, perfeita, que a tradução é uma atividade subjetiva e que, por isso, é impossível avaliá-la de forma objetiva. Assim, nenhuma tradução poderia considerar-se errada. Diga isso para o revisor que rejeitou seu teste...

Obviamente isso não é verdade. Parafraseando o mestre Paulo Henriques Britto, o fato de não termos certeza absoluta sobre alguma coisa não significa que tenhamos incerteza absoluta. O fato de a tradução ser uma atividade subjetiva não implica que ela não possa ser avaliada com certo grau de objetividade. Isso não só é possível como é fundamental, do contrário não teríamos como garantir um mínimo de fiabilidade.

Acreditar que não é possível avaliar a qualidade de uma tradução é autossabotar-se, é impedir a si mesmo de avançar na carreira, é cair no relativismo de que toda tradução é genuína e aceitável. A qualidade agrega valor, enobrece.

Agora vamos tratar daquele intruso folgado que corrompe o nosso texto: o erro.

Para isso contaremos com critérios objetivos, propostos pela tradutóloga espanhola Amparo Hurtado Albir, que criou uma tabela de correção de traduções. Eis uma versão levemente adaptada por duas professoras-tradutoras que realizaram um estudo citado ao final deste texto:


INADEQUAÇÕES QUE AFETAM A COMPREENSÃO DO TEXTO ORIGINAL

CONTRASENSO (CS): Erro de tradução que consiste em atribuir um SENTIDO CONTRÁRIO ao do texto original.

FALSO SENTIDO (FS): Consiste em atribuir um SENTIDO DIFERENTE ao do texto original. Não diz a mesma coisa que o original por desconhecimento linguístico e/ou extralinguístico.

SEM-SENTIDO (SS): Consiste em usar una FORMULAÇÃO DESPROVISTA DE SENTIDO. Incompreensível, falta de clareza, compreensão deficiente.

NÃO MESMO SENTIDO (NMS): Consiste em APRECIAR INADEQUADAMENTE UM MATIZ DO ORIGINAL (reduzir ou exagerar sua significação, introduzir ambiguidade, erro dentro do mesmo campo semântico, etc.).

ADIÇÃO (AD): Consiste em INTRODUZIR ELEMENTOS de informação desnecessários ou ausentes no original.

SUPRESSÃO (SUP): Consiste em NÃO TRADUZIR ELEMENTOS de informação do texto original.

REFERÊNCIA CULTURAL MAL RESOLVIDA (CULT) INADEQUAÇÃO DE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA (VL): Consiste em NÃO REPRODUZIR (OU REPRODUZIR INADEQUADAMENTE) ELEMENTOS relativos à variação linguística, isto é, diferenças de uso e usuário: tom (T), estilo (EST), dialeto (D), idioleto (ID).


2. INADEQUAÇÕES QUE AFETAM A EXPRESSÃO NA LÍNGUA DE CHEGADA

ORTOGRAFIA E PONTUAÇÃO (ORT) GRAMÁTICA (GR) LÉXICO (LEX): Barbarismos, empréstimos, usos inadequados.

TEXTUAL (TEXT): Incoerência, falta de lógica, mau encadeamento discursivo, uso indevido de conectores, etc.

REDAÇÃO (RED): Formulação defeituosa ou pouco clara, falta de riqueza expressiva, pleonasmos, etc.


3. INADEQUAÇÕES PRAGMÁTICAS (PR)

Incoerentes com a finalidade da tradução (em relação ao tipo de solicitação, ao destinatário a quem se dirige), o método escolhido, o gênero textual e suas convenções, etc.

 

Fontes:

FÉRRIZ MARTÍNEZ, Carmen; SANS CLIMENT, Carles. Una propuesta de intervención didáctica en la enseñanza de la traducción del portugués al español: análisis de errores de traducción. MarcoELE: Revista de Didáctica, n. 11, p. 37-63, 2010. Disponível em: <http://marcoele.com/descargas/11/03.ferriz_sans.pdf>.

BRITTO, Paulo Henriques. A Tradução Literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

Outros textos sobre qualidade aqui no blog:

Controle de qualidade de textos traduzidos ou vertidos

O que é material de referência e qual a sua importância?

Quanto vale o seu trabalho? 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Tradução do conto "El misterio inicial de mi vida", de Miguel de Unamuno


O mistério inicial de minha vida

Miguel de Unamuno

Tradução de Diana Margarita Sorgato

Nunca conseguirei esquecer, nem se o quisesse, o que eu poderia chamar com toda propriedade de horizonte terrestre de minha história íntima, da biografia de minha alma. Tudo isso para esta lembrança, tudo aquilo além dele, é para mim como um remoto velame que além desse horizonte forma o fundo insondável, infinito, de minha vida passada. Dessa lembrança surge minha consciência e até me atrevo a dizer que toda a vida do meu espírito não foi mais do que um desenvolvimento dele. Do meu pai não me lembro senão em relação a esse acontecimento inicial de minhas confissões; meu pai não é para mim mais que o ator desse acontecimento. Que foi, sem dúvida, o desfecho, o fim de uma tragédia, mas que para mim nada mais é que o surgimento de outra. Nem posteriormente me atrevi nunca, pelo que direi, a inquirir de minha mãe o sentido daquela terrível cena. Era o cair da tarde, lembro-me como se fosse hoje, e eu estava com minha mãe, na sala de jantar, ela contemplando o pôr do sol, e eu rabiscando um quadro-negro. Meu pai fechado em seu escritório trabalhava como de costume. E seu trabalho era escrever, nunca pude saber o quê nem para quê. Parece-me lembrar que, ao erguer os olhos de meus desenhos, vi como duas pérolas vermelhas nos olhos de minha mãe, que eram os arrebóis crepusculares; o sol se deitava dessangrando-se como em uma mortalha nas nuvens que cingiam a serra distante refletidos nas respectivas lágrimas vergonhosas e furtivas. De repente, minha mãe balançou a cabeça — ainda me parece ver a agitação de sua cabeleira loira sobre a celagem do ocaso — e exclamou com voz como de agonizante: “O quê? O que foi?” Um tiro ressoara no escritório. Minha mãe se levantou, foi até a porta do escritório e a encontrou trancada por dentro. Então começou a empurrá-la e a bater nela chamando com uma voz repleta de angústia: “Pedro! Pedro! Pedro!” A suas vozes atendeu o velho criado e, embora aterrados, com suas vozes romperam o silêncio que nos chegava do escritório, minha mãe e ele começaram a empurrar a porta até que esta cedeu. Lançaram-se ao interior, e eu, atrás deles. Meu pai jazia em sua poltrona, branco e vermelho, branco de cera o rosto y avermelhado por um fio de sangue que escorria de sua têmpora. No chão, um revólver. Sobre a mesa de trabalho, a escrivaninha, um papel dobrado que minha mãe se apressou em apanhar e guardar. A qual ao ver aquilo depois de murmurar para si: “Era de se temer!”, emboçou-se num terrível silêncio. A primeira coisa que fez foi procurar-me com os olhos, não já somente enxutos de lágrimas, mas secos e opacos, e tão logo me viu, segurou minha mão, levou-me até o que tinha sido meu pai e me disse: “Beije-o pela última vez” e me afastou do escritório. E lembro-me de que, ao beijá-lo, meu maior cuidado foi não sujar-me com aquele fio de sangue e que senti nos lábios uma frieza que nunca os deixou completamente. Não vi minha mãe durante todo o dia seguinte, pois me deixaram com as criadas. Mas no outro, mal levantei da cama, ela me segurou, abraçou-me, apertou-me tanto que quase me deixou sem fôlego, aproximou sua boca seca à minha testa, depois aos meus olhos, e assim me teve, não sei por quanto tempo —pareceu-me muito, tanto como toda minha vida até então —, sem fazer o menor barulho. Pois não somente não falava nem soluçava, senão que nem a ouvia respirar. Dir-se-ia que estava tão morta quanto meu pai. E não ousei perguntar-lhe nada. Aquela imorte estava, e continua estando desde então, entre minha mãe e eu como um segredo sagrado. Aquela morte voluntária, e principalmente a razão dela, por que se matou?, começou a ser, sem que a princípio eu o percebesse, o mistério inicial de minha vida. Em torno daquela visão se foram organizando todas as subsequentes visões de minha experiência. Nem minha mãe tinha para mim sentido íntimo senão ligada àquele sucesso, àquele tiro que rompe um silêncio de ocaso e àquele fio de sangue sobre um rosto marmóreo.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Entrevista a Márcia Ribas, tradutora de A Sombra do Vento




Márcia Cavalcanti Ribas Vieira é graduada em Ciências Sociais, com mestrado em Letras pela PUC-RJ, com uma tese sobre o livro Lavoura Arcaica de Raduan Nassar. Morou durante algum tempo na Argentina e no Chile e traduziu cerca de 20 livros entre 1983 e 2008, entre os quais o fenômeno de vendas A Sombra do Vento — do escritor espanhol Carlos Ruiz Zafón, que conquistou fama internacional com esse livro — pela Editora  Objetiva em 2004. Além disso, Márcia traduziu e fez versões de alguns filmes para a TV e publicou o livro de poesias Anos 70, pela Editora 7 Letras em 2002. Afastou-se da área de tradução em 2008.

Olá, Márcia, seja muito bem-vinda! Em primeiro lugar gostaria de agradecer sua disposição em participar desta entrevista e dizer que admiro muito seu trabalho. Como fã de A Sombra do Vento (livro que já li três vezes), gostaria muito de saber mais sobre sua experiência como tradutora dessa obra do espanhol europeu para o português do Brasil.

A tradução literária é por si mesma uma tarefa muito instigadora, mas cada livro é um desafio à parte. Quais foram as principais dificuldades que você encarou quando traduziu A Sombra do Vento?

As maiores dificuldades foram, sem dúvida, as expressões idiomáticas, as expressões de um modo geral. Orientada pelo espanhol “argentino”, algumas expressões eram totalmente desconhecidas para mim, oriundas de épocas e locais precisos, em Espanha, na Barcelona, naquela época. Outras, conhecidas, sim,  no espanhol  “argentino” mas não por mim.

Cada autor tem um estilo próprio que precisa ser respeitado para que o leitor tenha a experiência mais próxima daquela que teria se pudesse ler o original. No que diz respeito a Carlos Ruiz Zafón, que dificuldades impõe seu estilo?

São as expressões, basicamente. O texto de um modo geral e muito poético, muito sentimental, com muitas descrições que relatam sonhos e impressões. É preciso seguir o que o autor quer dizer. E básico entender que o texto é poético. No entanto, nos diálogos, quando há expressões que não conhecemos, estas se tornam a maior dificuldade. Podemos trocar as palavras, mas é essencial passar o que o autor quis dizer, o sentido daquilo que está dizendo.

E a tradução dos diálogos? Quais foram suas diretrizes para conseguir um bom resultado?

Ser o mais fiel possível ao que os personagens querem dizer.

A obra em questão está impregnada de marcas culturais, referências a Barcelona, a pratos típicos, a personagens históricos, à Guerra Civil espanhola. Como lidar com toda essa informação?

É indispensável fazer uma pesquisa inicial, buscar dicionários especializados, dicionários de espanhol, outro de espanhol/português, outro português/português, dicionários que explicam, outro que dão sinônimos, antônimos, dicionários de gírias e  expressões espanhol/espanhol, dicionário espanhol/francês , de gírias em francês, e assim por diante. Quanto à época histórica, não vi tanta necessidade de ir muito além do que estava no texto, e um pouco já conhecia; a culinária, foi preciso pesquisar, e até passei lista de palavras a uma pessoa conhecida. E preciso “desvendar” o livro, esclarecer o máximo possível tudo, para depois começar a transportá-lo ao seu idioma. E bom esclarecer que falo espanhol desde muito pequena, por questões familiares. E português, fui leitora assídua da literatura nacional e estrangeira.

Nem sempre podemos nos servir das mesmas palavras que o autor usa no outro  idioma. Para isso, a leitura de um modo geral é importantíssima, ler os grandes autores, como se servem da linguagem. E ainda temos a questão da sintaxe, da gramática em português, que, se bem que o revisor vai ajudar, é uma área em que, quanto mais domínio tivermos, mais fácil será a tradução.

A intraduzibilidade é uma pedra no sapato do tradutor, no entanto não temos como fugir dela. Qual é a sua atitude diante de um termo ou expressão intraduzível?

Colocando nota de rodapé, explicando ao máximo.

Para terminar, uma curiosidade: Qual é o seu personagem favorito de A Sombra do Vento e por quê?

Acho que é o Fermín Romero de Torres, mas todos são interessantíssimos!

Agora sim, a "saideira": O que representa A Sombra do Vento em sua vida?

Bem, um trabalho que levei a cabo com muita satisfação. O livro é uma obra muito bem realizada. 

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Teoria x prática

Esses dias presenciei algumas discussões em grupos de tradutores a respeito da falsa dicotomia entre a teoria e a prática, desculpem o chavão, como se ambas não fossem faces de uma mesma moeda. De um lado, os que defendiam a necessidade da educação formal, inclusive alguns que assumiam sofrer da síndrome do "eterno aprendiz", acumulando diplomas de graduação e pós-graduação, mas com pouca experiência prática; do outro aqueles que enfatizavam a importância da prática em detrimento da teoria.

Desde pequenos aprendemos as coisas do mundo através de duas visões, a teórica e a prática, assimilamos pela observação e pelas explicações que recebemos. Ouvimos repetidamente que precisamos comer para crescer e ficar fortes, mas só conseguimos entender a relação entre a comida e o crescimento, mais adiante, quando aprendemos sobre nosso organismo e sua necessidade contínua de energia para funcionar adequadamente. Só então compreendemos que nosso corpo, como uma máquina, processa os alimentos e os transforma em energia. É, nossa mãe estava certa, precisamos comer para ficar fortes.

Assim, a fundamentação teórica serve para confirmar ou refutar nossas observações, e mais, para ampliar nossa perspectiva, fazendo-nos enxergar além do óbvio.

Em geral, quando decidimos ser tradutores, baseamo-nos em nosso conhecimento de ao menos um par de línguas. Achamos que isso é o suficiente para transpor uma mensagem de uma cultura para outra. Somos jovens, conhecemos mais de uma língua, mais de uma cultura, somos diferenciados. Sentimo-nos no comando, somos ousados, não temos medo de arriscar, agimos por intuição e refutamos a teoria em nome da prática. Acreditamos que temos um dom, um talento natural.

Mas aí vem a frustração quando encaramos o trabalho real e percebemos que não estamos preparados para lidar com tantas exigências. Nosso "talento natural" não dá conta de resolver os obstáculos que se apresentam... Hesitamos diante de tantas dúvidas, sentimo-nos inseguros, e é então que "a ficha cai": precisamos de algo a mais. Algo que nos permita tomar decisões firmes, que nos permita defender nossas escolhas com segurança. É aí que entra a fundamentação à qual nos referimos mais acima.  Queremos dominar nosso ofício, conhecê-lo a fundo, fazer nosso trabalho da melhor forma. Buscamos o desenvolvimento pessoal e profissional, o respaldo para construir uma carreira sólida.

Não queremos nivelar-nos por baixo, queremos a excelência. A nossa postura muda: admitimos que não conhecemos da missa um terço.

Não vou entrar em detalhes sobre minha formação, porque daria uma novela. Resumindo: levei mais de 17 anos para me formar, mas não me envergonho disso, pelo contrário, fui persistente, nadei contra a corrente. Estudei três anos completos de Letras Língua Portuguesa, não me formei. Anos mais tarde, formei-me em Letras Língua Espanhola, na UFSC. Depois disso, quando decidi dedicar-me à tradução, cursei uma pós-graduação em Tradução de Espanhol. No total, foram 9 anos de estudo. Mas não parei por aí, sempre que posso, faço algum curso, leio algum livro da área, porque sei que ainda tenho muito que aprender.

Se o estudo fez alguma diferença? Sim, fez muita diferença. Acreditem. Da água para o vinho. Falando nisso, dizem que tradutor é como o vinho, melhora com os anos, mas é bom lembrar que o vinho, quando se corrói, vira vinagre... Ou seja, envelhecer sim, mas com leveza, mantendo-nos ativos e buscando evoluir.

Quais seriam os conhecimentos teóricos necessários para o tradutor?

Acredito que o conhecimento profundo das línguas fonte e alvo é fundamental. O tradutor precisa conhecer a fundo as normas e padrões que regem as línguas com as quais trabalha, e ainda, suas idiossincrasias, conhecer a norma culta, mas também as variações, os regionalismos, as expressões idiomáticas, jargões, tecnicismos, gíria, quanto mais amplo seu conhecimento, melhor.  Afora a bagagem cultural. É importante ter algum conhecimento da história, geografia, manifestações culturais e costumes dos países em questão.  

Também é recomendável conhecer um pouco da teoria da tradução, as diferentes vertentes, os movimentos filosóficos por trás dessas vertentes, as tendências e os questionamentos. E conhecer, principalmente, as técnicas e estratégias de tradução.

Não acho que seja essencial, mas, sem dúvida, é enriquecedor conhecer um pouco da história da tradução: saber  como surgiram os primeiros tradutores, as primeiras escolas, o que traduziam, como o faziam, a evolução e a formalização do ofício e seu papel na sociedade, entre outros.

Não se trata de acumular conhecimento. É preciso saber aplicá-lo, servir-se dele no dia a dia. Para complementar a teoria, é aconselhável buscar oficinas ou estágios que nos permitam colocar as mãos na massa para avaliar nossas fortalezas e fraquezas.

Uma vez que tenhamos um conhecimento mínimo da tradução, precisaremos especializar-nos em alguma modalidade: tradução técnica, tradução editorial, tradução audiovisual, localização de softwares e jogos, interpretação, etc. Sem falar que cada uma dessas modalidades, se desdobra em outras especialidades.

Deixando de lado a teoria e a prática, há outro aspecto muito importante que não devemos negligenciar: o mercado. Precisamos entender como funciona o mercado da tradução, conhecer os envolvidos e as regras do jogo. E, num cenário competitivo como o mercado da tradução, é preciso dominar algumas tecnologias, como as ferramentas de auxílio à tradução, assim como cultivar nossa rede de relacionamentos através das redes sociais.

É de fato um processo trabalhoso, mas não existe reconhecimento sem esforço. Valendo-me do bordão maromba: no pain, no gain (literalmente, sem dor, sem ganho).

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

4 canais sobre tradução no YouTube

Hoje vou apresentar cinco canais sobre tradução que eu sigo no YouTube e que vale a pena conferir! 

Estes canais têm em comum o fato de terem sido criados por tradutores, e não por agências de tradução ou editoras, o que lhes dá um toque mais pessoal.

Se você tiver outras sugestões, deixe seu comentário.


Com 132 vídeos, este é um canal pessoal da tradutora Laila Rezende Compan, utilizado para complementar as dicas do blog Tradutor Iniciante para ajudar os tradutores que estão começando a carreira, e também para ajudar quem pretende ser um tradutor profissional, além de dicas para mulheres e alguns vídeos extras sobre diversos temas.




Com 44 vídeos, este é o canal da experiente tradutora Natalie Gerhardt, com dicas sobre tradução literária, mercado editorial, resenhas, etc.




Com 107 vídeos, este é o canal do tradutor Juliano Timbó Martins, onde ele compartilha dicas sobre o interessantíssimo mercado da tradução. Descubra mais sobre esta profissão e este mercado em constante crescimento.




Com 15 vídeos, este é o canal da experiente tradutora Ivone Benedetti, que atuou como tradutora durante 30 anos para grandes editoras brasileiras. Nele, Ivone dá valiosas dicas sobre a profissão. Ela também é autora do site www.editra.com.br,  dedicado a cursos e recursos para tradutores e aprendizes de tradutores.



segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

A importância das colocações na tradução


O que seria uma colocação? Uma colocação é uma combinação de palavras cristalizada pelo uso, isto é, internalizada no subconsciente dos falantes pela frequência de uso. Trata-se de uma convenção, um uso endossado pela comunidade linguística. São exemplos de colocações com substantivo + adjetivo, desejo ardente, amor cego, ódio mortal. Embora haja colocações com vários tipos de classes gramaticais (substantivo + adjetivo; verbo + substantivo; verbo + advérbio; adjetivo + advérbio, etc.), vamos focar nas colocações com verbo + substantivo, tais como ministrar um curso, agendar uma consulta, cometer um erro, causar uma impressão, conciliar o sono, formular uma pergunta, etc.

Qual é a importância de conhecer as colocações para a tradução? Como dissemos, as colocações são combinações de palavras consagradas pelo uso, portanto, conferem naturalidade e fluidez ao texto/discurso. É um conhecimento refinado, que não passa despercebido pelo leitor/ouvinte e que denota domínio linguístico.

Suponhamos que, ao ler um texto, deparemos com algo do tipo “ele fez um erro ao aceitar o cargo” ou “ela fez uma opinião sobre o fim da parceria”. Provavelmente nos causaria estranhamento, já que algo não encaixa, não soa bem. Isso porque o verbo fazer não é o mais adequado nessas construções, o verbo fazer é um verbo genérico, abrangente, utilizado como um curinga, devemos fugir de verbos clichê, de sentido vago. Vejamos os exemplos anteriores, desta vez com os verbos adequados: “ele cometeu um erro ao aceitar o cargo” e “ela emitiu uma opinião sobre o fim da parceria”. Eis outros verbos curinga que devemos evitar: dar, dizer, ter e pôr.

Em lugar de um verbo genérico como dar, por exemplo, devemos optar por sinônimos mais precisos, tais como atribuir, conferir, outorgar, oferecer, legar, etc., que expressem de forma mais específica a ideia que desejamos transmitir.

Uma das qualidades do bom texto é a precisão, portanto aí reside a importância de conhecer as colocações, para produzir traduções de boa qualidade; precisas, fluidas e convincentes.

Vejamos abaixo algumas colocações frequentes em espanhol e suas respectivas traduções:

Sentar las bases = Estabelecer as bases

Librar una guerra = Travar uma guerra

Celebrar una reunión = Realizar uma reunião

Impartir un taller = Ministrar uma oficina

Concertar una cita = Agendar ou marcar uma hora/consulta

Propinar una paliza = Dar uma surra

Entablar um diálogo = Iniciar um diálogo

Plantear una idea = Levantar/apresentar/propor uma ideia 

Asestar una puñalada = Desferir uma punhalada

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Impressões tradutórias e literárias

Bom dia, queridos leitores! Espero que tenham desfrutado das festas de fim de ano ao lado — ou ainda, em pensamento — de pessoas queridas e que comecem o ano com o pé direito e com muita esperança.

De minha parte, para começar bem o novo ano, nada como um post sobre literatura e tradução... minhas fraquezas, uma vez que não posso resistir a elas. Quem acompanha minhas publicações conhece minha fascinação pelo mundo dos livros. No entanto, como tradutora e amante das letras, quando leio um livro não posso abster-me de prestar atenção ao trabalho com o texto. E quando se trata de uma tradução, concentro-me na naturalidade, na fluidez, nos idiomatismos, nas referências culturais, etc. Para mim, a leitura, antes de mera distração, é também um exercício e um instrumento de reflexão.

Em se tratando de tradução literária, sou partidária das teorias que defendem que o bom tradutor é aquele que aparece o mínimo possível, que modestamente se apaga em nome do original, isto é, que tenta reproduzir para o leitor, da maneira mais fiel possível, a experiência que este teria se pudesse ler o original. Não é esta, por si só, uma tarefa suficientemente louvável? Discordo da ideia de que a diferença entre o original e a tradução seja mero preconceito. Existe, sim, uma relação de subordinação da tradução para com o original, por tanto, traduzir é uma tarefa servil, subserviente. Não vejo problema nenhum nisso, pelo contrário, aí reside sua grandeza.

Discordo das teorias que defendem uma intervenção direta do tradutor, introduzindo nos textos alguma passagem destoante, como um anacronismo, uma gíria atual em um romance de outra época, por exemplo, de forma deliberada, para que o leitor perceba que está lendo uma tradução. Em minha opinião, essa é uma forma espúria de fazer-se visível.

Recentemente, ao ler o livro Misto-quente, de Charles Bukowski, tradução de Pedro Gonzaga, observei duas formas positivas e lícitas, a meu ver, de o tradutor fazer-se visível: por meio da apresetanção do livro e das notas do tradutor.

É claro que para isso é necessário o aval da editora. Merece reconhecimento a atitude da LP&M que abriu para o tradutor um espaço geralmente reservado ao próprio autor, a outro escritor ou a um crítico literário: a apresentação. Parece-me uma decisão inteligente, já que o tradutor tem uma visão ampla, mas ao mesmo tempo singular da obra, resultado do contato íntimo e intenso com esta. De fato, a apresentação do livro em questão ficou muito boa: reveladora na medida certa sem estragar a surpresa ou, como se diz por aí, sem spoiler. Essa sim é uma forma legítima de o tradutor aparecer.

Outra participação louvável foi a inclusão de notas do tradutor (n.t.). Embora alguns as vejam como um sinal da incapacidade de lidar com os problemas de tradução no próprio texto, ou ainda, como um recurso invasivo ou condescendente com o leitor, acredito que, em algumas situações, não só são admissíveis como também necessárias. No livro em questão, o tradutor incluiu diversas notas sobre o futebol americano, personagens e fatos históricos ou culturais, todas muito pertinentes. Neste caso, considero um recurso válido, uma vez que enriquece a leitura e sacia a curiosidade do leitor.

Já no campo literário, em uma época em que impera a hipocrisia do politicamente correto, é libertador ler um desabafo honesto, despido de escrúpulos, de alguém que se sente desajustado e que expressa sua insatisfação com uma crueza que, embora possa incomodar em alguns momentos, também é capaz de despertar empatia e compaixão. Misto-quente é um romance de formação que questiona a influência do meio sobre o indivíduo. Relata a infância, a puberdade e o início da vida adulta de Henry Chinaski, um garoto alemão que aos três anos de idade se muda com a família para os bairros pobres de Los Angeles.

Por meio da ligação de lembranças e impressões, o narrador-protagonista reconstrói seu trágico desenvolvimento relatando os momentos que mais o marcaram: a sensação de ter sido adotado, a indiferença da mãe e o sadismo do pai, que o surrava pela mínima razão; as dificuldades financeiras e familiares por ocasião da grande depressão; o tormento e o sofrimento físico devido a um caso extremo de espinhas; a dificuldade de relacionar-se com ou outros e o bullying. Tudo isso vai matando a esperança do garoto, que mergulha cada vez mais no pessimismo e na degradação, buscando refúgio na bebida e extravasando sua frustração contra poucos que ainda o procuram.

A linguagem soez reflete as misérias das lembranças. O estilo direto e impudico do autor, livre de subertfúgios, rendeu-lhe o estigma de escritor de segunda linha, malgrado seu talento criativo. Alguns dizem que há muito de Bukowski em suas histórias e personagens. Pedro Gonzaga, o tradutor, em sua apresentação, contesta essa afirmação dizendo que "O forte caráter autobiográfico que pode, com certeza, ser encontrado ao longo de toda obra é somente o meio e nunca o fim.".

Nietzsche disse uma vez "Quem tem um porque pode suportar qualquer como". Mas e quem não o tem? Para este, a existência se torna insuportável, restando somente a desolação. A atitude de Chinaski desperta sentimentos antagônicos, se por um lado seu sofrimento invoca piedade; por outro lado, sua impassividade e indiferença causam repulsa.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A tradução de obras regionalistas



Como é muito difícil encontrar oficinas on-line de tradução literária, especialmente de espanhol, de vez em quando eu leio um livro nas duas línguas — espanhol e português — como exercício, para aprender com o trabalho de outros tradutores, observando suas escolhas, estratégias e soluções.

Desta vez escolhi um romance que tem como pano de fundo o sertão, a escolha foi proposital, pois meu objetivo era observar como traduzir para outra língua elementos típicos da cultura e do bioma sertanejos, tais como fauna, flora, culinária, indumentária, tipos sociais, costumes e falares do sertanejo, etc.

A dificuldade de traduzir um romance regional reside na falta de correspondentes no outro idioma porque o referente — seja ele concreto ou abstrato — inexiste na cultura de chegada.

Como levar ao leitor estrangeiro uma realidade totalmente diferente da sua?
Como traduzir, por exemplo, termos como caatinga, cangaço, jagunço, alpercatas, coiteiro, coronel, mandacaru, cabra da peste, cerrado, mau-olhado, corpo fechado e tantos outros? E, ainda, como reproduzir em outro idioma um sotaque ou um falar típico?

Ao traduzir uma obra regionalista há duas estratégias: a domesticadora, que consiste em criar um texto fluente que não pareça uma tradução, eliminando ao máximo a estranheza sintática, as marcas regionais e culturais, substituindo-as por referências locais, familiares ao leitor; ou a estrangeirizante, que consiste em levar o leitor ao lugar, conservando todas as referencias do original e deixando transparecer a estranheza.

Essa dicotomia foi defendida por Schleiermacher, o qual tinha uma preferência clara pela segunda estratégia, a estrangeirizante, em oposição a uma tendência dominante na época, imposta, sobretudo, pelos franceses de fazer traduções tão domesticadoras que poderiam ser consideradas adaptações e que lhes valia a alcunha de “belas infiéis”, pois modificavam os textos estrangeiros a tal ponto que pareciam originalmente escritos em francês.

Em seu livro A tradução literária, Paulo Henriques Britto afirma que essas duas estratégias representam mais um par de ideais absolutos inatingíveis e que, na prática, o que fazemos é adotar posições intermediárias entre os dois extremos, evitando uma tradução radicalmente estrangeirizante a ponto de resultar em um texto ilegível ou, no outro extremo, uma tradução que leve a domesticação às últimas consequências de maneira que o resultado seja outra obra, uma adaptação.

Pessoalmente, quando leio um romance de uma cultura exótica, busco sentir o estranhamento que sentimos quando fazemos uma viagem ao deparar com outra cultura, outra história e outra visão de mundo. Em minha opinião é esse contato com o outro que enriquece a experiência de ler um romance estrangeiro.

Voltando à experiência em questão, o livro que escolhi, Entre Irmãs, embora seja ambientado no sertão, foi escrito originalmente em inglês por Frances de Pontes Peebles, escritora brasileira nascida no Recife e criada em Miami, na Flórida. Lançado no mercado americano, em 2009, com o nome The seamstress (A costureira), só chegou ao Brasil no ano seguinte, publicado pela Nova Fronteira, então como A costureira e o cangaceiro. O romance foi traduzido a nove idiomas e adaptado para o cinema pela Conspiração Filmes e para a TV pela Rede Globo, em formato de minissérie com o nome Entre Irmãs.

O livro que eu li em português foi Entre Irmãs, reedição da Editora Arqueiro, que reproduz o nome do filme, tradução de Maria Helena Rouanet. E a versão em espanhol foi La costurera, publicado pela editora Debolsillo, tradução de Julio Sierra e Jeannine Emery.

Uma vez que o tradutor tem em mãos o original, começam as dificuldades e as inevitáveis escolhas:

Regionalismos intraduzíveis

Ao deparar com um termo que não tem correspondente na cultura de chegada, uma opção é criar um neologismo ou adaptação, tal como ocorreu, por exemplo, com a palavra sertón, neologismo que acabou enriquecendo o acervo da língua espanhola após a tradução da obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Outra opção é manter o termo tal qual no original. A segunda opção foi a escolhida pelo tradutor de, La Costurera, que manteve a grafia original, sertão.
Uma alternativa é parafrasear o termo intraduzível, como foi feito com a palavra “tapioca” traduzida como “panqueque de mandioca”. Ou ainda, manter o termo original seguido de uma breve explicação: “Dicen que el doctor es um coiteiro, un cómplice de los malechores”.

Nomes de pessoas

Geralmente os nomes de pessoas não se traduzem, mantêm-se os acentos e os caracteres do original, essa foi a opção adotada pelo tradutor, que manteve as grafias originais: Emília, Luzia, Doña Conceição, Antônio Teixeira, los Coelho, etc. Já no caso dos apelidos dos cangaceiros, faltou certa uniformidade: traduziu alguns e manteve a grafia original de outros que poderiam ter sido traduzidos: Orejita, Inteligente, Canjica, Ponta Fina, Chico Ataúd (Chico Caixão), Medialuna, Seguridad (Alfinete de Fralda), Jurema, Sabiá, Zalamero (Fala Mansa), Baiano, etc.  Quando um nome é escrito em um alfabeto muito diferente, como, por exemplo, o árabe ou o russo, é possível fazer a transliteração, que consiste em representar os caracteres da escrita da língua de partida pelos caracteres da língua de chegada, Por causa disso, vemos nomes como "Ajmed", "Yibrán" e "Jaled", quando estamos acostumados a escrever "Ahmed", "Gibran" e "Khaled".

No livro em questão, o apelido Neném virou Bebé na versão em espanhol, e o apelido do chefe do bando dos cangaceiros, Carcará, em espanhol foi traduzido como Halcón (falcão) seguindo o original em inglês, “Hawk”. Certamente a falta de uniformidade entre as escolas das versões em espanhol e português se deve ao fato de as duas traduções terem sido realizadas a partir de uma terceira língua, o inglês.

Chamou minha atenção, na versão em espanhol, a presença de duas grafias para um único nome: Luzia e Lucía, mas percebi que a razão disso é que a primeira se referia ao nome de uma das protagonistas, enquanto que a segunda se referia a santa Lucía, a protetora da visão. Assim, a primeira manteve a grafia utilizada no Brasil, e a segunda a grafia do espanhol.

Topônimos e acidentes geográficos

Geralmente também não se traduzem nomes de localidades ou acidentes geográficos, salvo quando estes já têm sua tradução assentada, como, por exemplo, Río de Janeiro ou Bahía de Todos los Santos. O rio San Francisco teve seu apelido afetuoso traduzido como Viejo Chico.

Cultura e costumes

A versão em espanhol manteve a grafia em português de praticamente todos os papéis desempenhados pelo sertanejo: cangaceiro, jagunço, coiteiro, etc., inclusive daqueles tinham correspondentes em espanhol, como, por exemplo, “vaqueiro”.
Em outras ocasiões, estes apareciam acompanhados da respectiva explicação “Finalmente, para los coroneles, los grandes terratenientes del campo”.

Achei curioso o adjetivo “encanadeira”, utilizado para referir-se à pessoa que fazia as vezes de ortopedista no interior. Em espanhol, o tradutor empregou o termo ensalmador, acompanhado do aposto explicativo “el curandero que colocaba los huesos dislocados”.

Alguns termos típicos de crenças e costumes foram traduzidos, como, por exemplo, “mau-olhado” (mal de ojo), e outros foram mantidos em português, como “corpo fechado”: “¿Creía ella que pronunciando la oración del corpo fechado protegia su cuerpo del mal?”.

Acredito que a intenção tenha sido realçar o sabor local, conforme as palavras da própria escritora que utilizou esse recurso no original em inglês: “Não existe tradução para alpercatas, cangaço ou jagunço. Não são sandálias de couro, bandidos nem vaqueiros, têm outro significado. Então, pus notas explicativas e deixei tudo como se fala aqui, até porque pretendia reproduzir um pouco da musicalidade do palavreado polissilábico português”.

Falares ou dialetos

Os diálogos não apresentam marcas dialetais em português, nem em espanhol. Os diferentes sotaques são descritos na narração, mas não são reproduzidos nos diálogos:

Sabía leer y escribir y hablaba con un deje de São Paulo que no guardaba ningún parecido con su acento del noreste. No cortaba los finales de las palabras, permitía  que la  ‘o’ y la ‘s’ se quedaran sobre la lengua, saboreándolas antes de lanzarlas al mundo”.

En presencia de Lindalva, la joven esposa de tierra adentro temía decir demasiado, caer en sus viejos hábitos o hablar con su acento provinciano”.

Ahora sé que eso es falso. Su acento de Río era fuerte y exagerado”.

Outras observações

Um fato curioso que chamou minha atenção foi que, na versão em português, menciona-se o nome de um personagem histórico, o então candidato e posteriormente presidente Getúlio Vargas, com seu nome real, enquanto que na versão em espanhol e no original em inglês, utilizou-se um nome fictício, “Celestino Gomes”. Não entendi o motivo dessa discrepância.

Outro detalhe que merece destaque na tradução é a terminologia especializada em outros âmbitos além do cangaço e do sertão, como, por exemplo, o do mundo da costura, mencionam-se nomes de tecidos, peças de vestuário, indumentárias da moda, e ainda, pontos de bordado e tipos de costura.

Ou ainda, quando faz referência à “frenologia”, pseudociência em voga no início do século XX, que consistia no estudo da estrutura do crânio de modo a determinar o carácter das pessoas e a sua capacidade mental. São temas muito específicos que requerem uma precisa pesquisa terminológica por parte do tradutor.

Além de considerar a variante da língua-fonte, ao traduzir um romance regionalista, também é preciso considerar as variantes da língua-alvo. O espanhol é falado em mais de 20 países pelo mundo, por esse motivo, o mercado editorial costuma recomendar uma espécie de “espanhol neutro” para conseguir a maior abrangência territorial possível, essa meta, no entanto, é bastante utópica, pois o que viria a ser um espanhol padrão? Uma variedade intermediária entre o espanhol hispano-americano e o espanhol peninsular?  

Por fim, cabe lembrar que a versão ao espanhol foi fruto do trabalho de dois tradutores. Fica a dúvida: De quem terá partido a iniciativa da parceria, dos próprios tradutores com o objetivo de aprimorar a pesquisa histórica e terminológica ou da editora para acelerar a publicação da tradução?

É isso aí, espero que estes apontamentos possam ser úteis àqueles que se interessam pela tradução literária!