segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Tradução e tipologia textual


Você traduziria da mesma forma uma bula de remédios e um romance?

Certamente não. Em nosso dia a dia recebemos pedidos de tradução dos mais diversos:  manuais técnicos, artigos acadêmicos, resenhas turísticas, cardápios, contratos, legendas, aplicativos, literatura, etc.

Cada texto tem suas características, linguagem e estilo próprios, público-alvo, terminologia. Então é razoável que apliquemos estratégias e abordagens diferentes conforme a tipologia textual.

Vejamos algumas questões que devemos levar em conta:

Textos técnicos

Funções predominantes: referencial, pelo seu caráter informativo, denotativo e explicativo.

Linguagem: caracteriza-se pelo conhecimento especializado, uso de jargões e estrangeirismos, é objetiva, descritiva, impessoal e instrucional.

Exemplos de texto técnico: manuais de usuário, de instalação e operação, descritivos técnicos, relatórios, laudos, patentes, etc.

Competências tradutórias: raciocínio lógico, processamento e síntese da informação, espírito investigativo, objetividade, precisão, clareza, uniformidade e consistência. Também é preciso que o tradutor conheça suas limitações e saiba recusar um trabalho quando não se sente apto.

Imagine um profissional que precisa operar um equipamento complexo, como um respirador. É crucial que as instruções sejam o mais claras e simples possível, de forma a eliminar o risco de uma má interpretação que possa colocar em risco a vida do paciente.

Tradução: literal na maioria dos casos, mas dinâmica em alguns momentos para tornar o texto mais claro, por exemplo em instruções; é funcional e utilitária pois têm em vista o usuário e pretende ajudá-lo a usar alguma coisa da melhor forma.

Textos científicos

Funções predominantes: informativa, referencial.

Linguagem: formato mais rígido: o rigor, a precisão e a coerência devem contribuir para alcançar um resultado elegante.

Exemplos de texto científico: trabalho acadêmico (teses, monografias, artigos, etc.).

Competências tradutórias: conhecer a redação acadêmica, saber como proceder na tradução de citações e referências bibliográficas, quais elementos devem ou não ser traduzidos; espírito investigativo, coerência, precisão e clareza. Quando se traduz diretamente para o autor, requer capacidade de reorganizar e sintetizar as ideias, capacidade de negociação e tato para convencer o autor a fazer as modificações necessárias.

Tradução: literal, também é funcional pois tem em vista divulgar conhecimento, estudos para a comunidade acadêmica e científica.

Textos turísticos

Funções predominantes: além da função referencial, prevalecem as funções conotativa e emotiva, pois o objetivo é convencer o leitor a fazer uma viagem ou passeio, viver uma experiência.

Linguagem: persuasiva, descontraída, informal. Geralmente usa verbos no imperativo (conheça, visite, experimente, contrate, etc.), predomina o texto descritivo, rico em adjetivos convidativos (paisagem cinematográfica, água cristalina, natureza exuberante, ambiente acolhedor, etc.). Apresenta termos intraduzíveis, regionalismos. Descreve percepções sensoriais: sabores, cheiros, cores e texturas.

Exemplos de textos turísticos: guias, resenhas, sites, revistas especializadas, etc.

Competências tradutórias: boa bagagem cultural, desejável conhecimentos de geografia e história, capacidade de explicar brevemente termos intraduzíveis, regionalismos. Saber o que se deve ou não traduzir nesse tipo de textos, como lidar com topônimos e localismos, por exemplo, sem descaracterizá-los.

Tradução: mais livre e criativa, funcional, pois pretende convencer o leitor a viver uma experiência.

Textos institucionais

Funções predominantes: referencial, emotiva e apelativa (quando pretende engajar o funcionário).

Linguagem: faz parte da identidade e reputação da instituição, esse tipo de texto requer uniformidade de estilo e consistência terminológica. A comunicação interna geralmente é mais informal, pois o objetivo e engajar os funcionários. Já a comunicação externa é mais formal, pois pretende estabelecer a reputação da empresa, ganhar a confiança do cliente e estabelecer um vínculo.

Exemplos de textos institucionais: comunicados, atas, políticas organizacionais (anticorrupção, de gestão de riscos, de segurança da informação, etc.).

Competências tradutórias: visão sistêmica da instituição, desejável ter noções de comunicação organizacional pública e privada. Ter sempre em mente o público-alvo.

Tradução: tradução literal no caso de normas, políticas e diretrizes e livre ou criativa em casos específicos. O ideal é que cada instituição/empresa conte com um guia de estilo para o tradutor, que estabeleça diretrizes e preferências. O tradutor pode dar sugestões, desde que bem justificadas, mas, em regra, prevalece a preferência do cliente.

Textos literários

Funções predominantes: poética ou estética, ou seja, a ênfase recai no próprio texto.

Linguagem: subjetiva, conotativa, caracteriza-se pela presença de metáforas, recursos de estilo, diálogos. Em poesia, há rima, cadência, estrofes, versos, etc.

Exemplos de texto literário: livros de ficção, contos, romances, crônicas, poesia, etc.

Competências tradutórias: por ser um objeto estético, o tradutor deve ser capaz de reproduzir, na medida do possível, os efeitos do original e fazer que os diálogos soem naturais, verossímeis. É muito desejável uma boa bagagem de leitura e de conhecimentos gerais para que ele seja capaz de identificar as referências literárias e culturais presentes na obra. Requer extrema fidelidade e respeito ao original, já que o livro é a voz do autor, suas impressões, reflexões e emoções. O tradutor não deve perder de vista o caráter servil do seu trabalho, seu papel é produzir um texto o mais próximo possível do original, de maneira que o leitor possa dizer que leu tal autor sem faltar à verdade.

Tradução: tão fiel quanto possível. Criativa em ocasiões muito específicas para resolver problemas tradutórios, não para introduzir modificações aleatórias.

Textos publicitários

Funções predominantes: conotativa, emotiva e semiótica, pois elabora representações, envolve signos e símbolos.

Linguagem: persuasiva, apelativa, informal, lúdica, criativa, envolve elementos visuais, sonoros.

Exemplos de texto publicitário: campanhas publicitárias, slogans, lançamentos, etc.

Competências tradutórias: criatividade, imaginação, noções de marketing, semiótica, localização (adequação ao mercado de destino), boa bagagem cultural. O tradutor deve ter em mente o público-alvo, bem como questões éticas que possam colocar em risco a reputação da empresa ou produto. Deve tomar cuidado para não usar termos politicamente incorretos e estar atento a aspectos culturais, pois alguns termos ou expressões podem resultar ofensivos em outras culturas.

Tradução: altamente criativa e funcional, pois o objetivo é vender uma imagem, produto ou serviço.

Textos jurídicos

Funções predominantes: assim como no técnico, predominam as funções referencial e informativa.

Linguagem: formal, técnica, rígida. O texto jurídico tem valor legal, público, no sentido de estabelecer normas, condições, obrigações. Apresenta muitos jargões e vocabulário especializado.

Exemplos de texto jurídico: contratos, certidões, leis, sentenças, editais, etc.

Competências tradutórias: redação técnica, conhecimento técnico de aspectos e conceitos legais, do sistema jurídico, além de exigir familiaridade com o "juridiquês", isto é, aqueles jargões e expressões específicas, muitas vezes arcaicos e excêntricos que dificultam consideravelmente a trabalho do tradutor.

Tradução: literal na maioria das vezes, criativa quando é necessário adaptar conceitos legais. Também é funcional porque deve ser eficaz e cumprir seu objetivo.

Limitei-me a abordar os tipos de texto que traduzo com mais frequência, mas há muitos outros mais (legendas, localização, jogos, notícias, etc.). Cada um com suas particularidades.

Textos relacionados:

Como validar terminologia especializada

Tradução literária

Tradução de textos turísticos

sábado, 17 de outubro de 2020

O que se considera um erro de tradução?


Todo tradutor profissional deve prezar pela qualidade do seu trabalho, mas, quando ainda se está no início de carreira, é comum sentir insegurança e duvidar da própria capacidade. Afinal, há muita ansiedade por conseguir a primeira oportunidade, mas, ao mesmo tempo, há o medo de ser reprovado no teste e ver a grande chance ir embora.

Há muitos textos que falam sobre as qualidades de uma boa tradução, eu mesma já publiquei  vários aqui no blog.

Basicamente, estas são as qualidades que uma boa tradução deve ter:

  1. fidelidade, fluência e naturalidade;
  2. precisão, coerência e correção gramatical;
  3. uniformidade e consistência terminológica;
  4. padronização de estilo.

Muito bem, conhecemos a nossa meta, mas, como chegar lá? O que se considera um erro de tradução?

Sabemos aonde queremos chegar, mas precisamos de parâmetros que possamos aplicar na prática para produzir um trabalho de qualidade.

Você já deve ter ouvido por aí que não existe uma tradução única, perfeita, que a tradução é uma atividade subjetiva e que, por isso, é impossível avaliá-la de forma objetiva. Assim, nenhuma tradução poderia considerar-se errada. Diga isso para o revisor que rejeitou seu teste...

Obviamente isso não é verdade. Parafraseando o mestre Paulo Henriques Britto, o fato de não termos certeza absoluta sobre alguma coisa não significa que tenhamos incerteza absoluta. O fato de a tradução ser uma atividade subjetiva não implica que ela não possa ser avaliada com certo grau de objetividade. Isso não só é possível como é fundamental, do contrário não teríamos como garantir um mínimo de fiabilidade.

Acreditar que não é possível avaliar a qualidade de uma tradução é autossabotar-se, é impedir a si mesmo de avançar na carreira, é cair no relativismo de que toda tradução é genuína e aceitável. A qualidade agrega valor, enobrece.

Agora vamos tratar daquele intruso folgado que corrompe o nosso texto: o erro.

Para isso contaremos com critérios objetivos, propostos pela tradutóloga espanhola Amparo Hurtado Albir, que criou uma tabela de correção de traduções. Eis uma versão levemente adaptada por duas professoras-tradutoras que realizaram um estudo citado ao final deste texto:


INADEQUAÇÕES QUE AFETAM A COMPREENSÃO DO TEXTO ORIGINAL

CONTRASENSO (CS): Erro de tradução que consiste em atribuir um SENTIDO CONTRÁRIO ao do texto original.

FALSO SENTIDO (FS): Consiste em atribuir um SENTIDO DIFERENTE ao do texto original. Não diz a mesma coisa que o original por desconhecimento linguístico e/ou extralinguístico.

SEM-SENTIDO (SS): Consiste em usar una FORMULAÇÃO DESPROVISTA DE SENTIDO. Incompreensível, falta de clareza, compreensão deficiente.

NÃO MESMO SENTIDO (NMS): Consiste em APRECIAR INADEQUADAMENTE UM MATIZ DO ORIGINAL (reduzir ou exagerar sua significação, introduzir ambiguidade, erro dentro do mesmo campo semântico, etc.).

ADIÇÃO (AD): Consiste em INTRODUZIR ELEMENTOS de informação desnecessários ou ausentes no original.

SUPRESSÃO (SUP): Consiste em NÃO TRADUZIR ELEMENTOS de informação do texto original.

REFERÊNCIA CULTURAL MAL RESOLVIDA (CULT) INADEQUAÇÃO DE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA (VL): Consiste em NÃO REPRODUZIR (OU REPRODUZIR INADEQUADAMENTE) ELEMENTOS relativos à variação linguística, isto é, diferenças de uso e usuário: tom (T), estilo (EST), dialeto (D), idioleto (ID).


2. INADEQUAÇÕES QUE AFETAM A EXPRESSÃO NA LÍNGUA DE CHEGADA

ORTOGRAFIA E PONTUAÇÃO (ORT) GRAMÁTICA (GR) LÉXICO (LEX): Barbarismos, empréstimos, usos inadequados.

TEXTUAL (TEXT): Incoerência, falta de lógica, mau encadeamento discursivo, uso indevido de conectores, etc.

REDAÇÃO (RED): Formulação defeituosa ou pouco clara, falta de riqueza expressiva, pleonasmos, etc.


3. INADEQUAÇÕES PRAGMÁTICAS (PR)

Incoerentes com a finalidade da tradução (em relação ao tipo de solicitação, ao destinatário a quem se dirige), o método escolhido, o gênero textual e suas convenções, etc.

 

Fontes:

FÉRRIZ MARTÍNEZ, Carmen; SANS CLIMENT, Carles. Una propuesta de intervención didáctica en la enseñanza de la traducción del portugués al español: análisis de errores de traducción. MarcoELE: Revista de Didáctica, n. 11, p. 37-63, 2010. Disponível em: <http://marcoele.com/descargas/11/03.ferriz_sans.pdf>.

BRITTO, Paulo Henriques. A Tradução Literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

Outros textos sobre qualidade aqui no blog:

Controle de qualidade de textos traduzidos ou vertidos

O que é material de referência e qual a sua importância?

Quanto vale o seu trabalho? 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Tradução do conto "El misterio inicial de mi vida", de Miguel de Unamuno


O mistério inicial de minha vida

Miguel de Unamuno

Tradução de Diana Margarita Sorgato

Nunca conseguirei esquecer, nem se o quisesse, o que eu poderia chamar com toda propriedade de horizonte terrestre de minha história íntima, da biografia de minha alma. Tudo isso para esta lembrança, tudo aquilo além dele, é para mim como um remoto velame que além desse horizonte forma o fundo insondável, infinito, de minha vida passada. Dessa lembrança surge minha consciência e até me atrevo a dizer que toda a vida do meu espírito não foi mais do que um desenvolvimento dele. Do meu pai não me lembro senão em relação a esse acontecimento inicial de minhas confissões; meu pai não é para mim mais que o ator desse acontecimento. Que foi, sem dúvida, o desfecho, o fim de uma tragédia, mas que para mim nada mais é que o surgimento de outra. Nem posteriormente me atrevi nunca, pelo que direi, a inquirir de minha mãe o sentido daquela terrível cena. Era o cair da tarde, lembro-me como se fosse hoje, e eu estava com minha mãe, na sala de jantar, ela contemplando o pôr do sol, e eu rabiscando um quadro-negro. Meu pai fechado em seu escritório trabalhava como de costume. E seu trabalho era escrever, nunca pude saber o quê nem para quê. Parece-me lembrar que, ao erguer os olhos de meus desenhos, vi como duas pérolas vermelhas nos olhos de minha mãe, que eram os arrebóis crepusculares; o sol se deitava dessangrando-se como em uma mortalha nas nuvens que cingiam a serra distante refletidos nas respectivas lágrimas vergonhosas e furtivas. De repente, minha mãe balançou a cabeça — ainda me parece ver a agitação de sua cabeleira loira sobre a celagem do ocaso — e exclamou com voz como de agonizante: “O quê? O que foi?” Um tiro ressoara no escritório. Minha mãe se levantou, foi até a porta do escritório e a encontrou trancada por dentro. Então começou a empurrá-la e a bater nela chamando com uma voz repleta de angústia: “Pedro! Pedro! Pedro!” A suas vozes atendeu o velho criado e, embora aterrados, com suas vozes romperam o silêncio que nos chegava do escritório, minha mãe e ele começaram a empurrar a porta até que esta cedeu. Lançaram-se ao interior, e eu, atrás deles. Meu pai jazia em sua poltrona, branco e vermelho, branco de cera o rosto y avermelhado por um fio de sangue que escorria de sua têmpora. No chão, um revólver. Sobre a mesa de trabalho, a escrivaninha, um papel dobrado que minha mãe se apressou em apanhar e guardar. A qual ao ver aquilo depois de murmurar para si: “Era de se temer!”, emboçou-se num terrível silêncio. A primeira coisa que fez foi procurar-me com os olhos, não já somente enxutos de lágrimas, mas secos e opacos, e tão logo me viu, segurou minha mão, levou-me até o que tinha sido meu pai e me disse: “Beije-o pela última vez” e me afastou do escritório. E lembro-me de que, ao beijá-lo, meu maior cuidado foi não sujar-me com aquele fio de sangue e que senti nos lábios uma frieza que nunca os deixou completamente. Não vi minha mãe durante todo o dia seguinte, pois me deixaram com as criadas. Mas no outro, mal levantei da cama, ela me segurou, abraçou-me, apertou-me tanto que quase me deixou sem fôlego, aproximou sua boca seca à minha testa, depois aos meus olhos, e assim me teve, não sei por quanto tempo —pareceu-me muito, tanto como toda minha vida até então —, sem fazer o menor barulho. Pois não somente não falava nem soluçava, senão que nem a ouvia respirar. Dir-se-ia que estava tão morta quanto meu pai. E não ousei perguntar-lhe nada. Aquela imorte estava, e continua estando desde então, entre minha mãe e eu como um segredo sagrado. Aquela morte voluntária, e principalmente a razão dela, por que se matou?, começou a ser, sem que a princípio eu o percebesse, o mistério inicial de minha vida. Em torno daquela visão se foram organizando todas as subsequentes visões de minha experiência. Nem minha mãe tinha para mim sentido íntimo senão ligada àquele sucesso, àquele tiro que rompe um silêncio de ocaso e àquele fio de sangue sobre um rosto marmóreo.