Queridos leitores,
Estou passando por aqui para deixar minhas impressões sobre a leitura que terminei hoje cedo, A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, edição da Companhia das Letras. Gente, que livro!!!
Esta leitura sem dúvida me impactou. Tanto que, mesmo tendo muita coisa para fazer, resolvi vir aqui rapidinho para registrar meus pensamentos antes que se esvaiam como nuvens ao vento (rimou!).
Primeiramente, agradeço à minha tia, leitora refinada e aguçada que já me recomendou leituras incríveis, como Los que vivimos (We the living), de Ayn Rand e As vinhas da ira (The Grapes of Wrath) de John Steinbeck, dois livros da vida. O primeiro tem resenha em espanhol aqui no blog; o segundo, creio que não. Aliás, decobri em minha tia uma cúmplice e parceira para compartilhar sugestões e impressões, temos muita afinidade quando o assunto e leitura. Estou aprendendo muito com ela e estou desfrutando muito dessa troca!
Mas vamos ao livro.
Eu tinha certo "ranço" (destesto essa palavra boba que virou estampa de camiseta) em relação a esse livro. Mas acho que neste caso o substantivo se aplica bem, porque se tratava de uma ojeriza sem fundamento, simplesmente porque ouvi comentários negativos sobre a relação abusiva e tóxica que seria romantizada nesse livro, algo nesse estilo.
Comentário muito superficial que acabou me contaminando, porque, embora as relações amorosas deste romance não sejam as mais saudáveis ou românticas do mundo, elas servem para levantar questões humanas muito mais profundas. Se fôssemos resumir de forma trivial o enredo do livro, poderíamos dizer que se trata da história de dois casais que vivem relações conflituosas e cujos destinos se entrelaçam. Mas isso seria reduzi-lo ao óbvio, chover no molhado. O que realmente torna esta obra especial, além da escrita e do estilo primorosos do autor, é a reflexão que suscita.
Tanto os personagens como as relações amorosas servem mais como excusa ou pano de fundo para uma ponderação mais profunda sobre diversos aspectos, como a efemeridade da vida, o acaso, a forma como as relações se estabelecem e se sustentam, e outra questões mais pragmáticas de natureza social, como a influência dos pais no comportamento dos filhos, a interferência da profissão, da cultura e da política no caráter do indivíduo.
A história começa com uma reflexão sobre o mito do eterno retorno de Nietzsche, nessa introdução, o autor já traz a contraposição ente o peso e a leveza. O peso se refere à ideia de eternidade através de situações que se repetem ad eternum; e a leveza, por sua vez, diz respeito àquilo que só se vive uma vez e que, portanto, se esvaece, é efêmero.
A seguir, ele aborda o peso e a leveza de nossas decisões. Ele questiona se existe de fato um destino, ou se ele serviria de pretexto para justificar nossas escolhas. O peso das nossas decisões está no fato de que o tempo todo vivemos uma situação pela primeira vez. Somos jogados ao palco para atuar sem ter ensaiado, como podemos saber se estamos agindo corretamente, tomando a decisão correta se tudo é inédito?
Para contestar a ideia de peso como algo negativo (a responsabilidade sobre os nossos hombros), e a ideia de leveza como algo positivo (a nossa liberdade), nada melhor que reproduzir um fragmento do livro que sintetiza bem essa noção:
Mas será mesmo atroz o peso e bela a leveza? O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.
Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semirreal, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes. O que escolher, então? O peso ou a leveza?
Mais adiante, o autor nos apresenta o pensamento alemão que faz parte de uma sonata de Beethoven, o "Muß es sein?" (tem que ser assim?), "Es muß sein!" (tem que ser assim!) para abordar a questão da missão e do destino do indivíduo. Estamos pré-destinados a algo? Temos uma missão? Há um sentido em nossa existência ou tudo não passa de obra do acaso, de uma série de coincidências? Se pudêssemos viver novamente, faríamos igual?
En quanto ao contexto, a trama se passa entre as cidades de Praga e Zurique e aborda a primavera de Praga, a invasão russa da República Tcheca, a invasão do Camboja pelos vietnamitas para derrubar o governo genocida de Pol Pot. O autor manifesta abertamente sua resistência ao totalitarismo do regime comunista.
Os personagens são moldados pelo contexto familiar, social e político em que vivem. Isso fica evidente na perseguição sofrida por Tomas após a publicação de seu artigo contra a ocupação russa num jornal, que o obriga a abandonar a medicina; na insegurança de Teresa em relação ao próprio corpo como resultado do comportamento grotesco e debochado da mãe; na frivolidade de Sabina e no idealismo e ânsia de liberdade de Franz.
Outro aspecto interessante do livro são as digressões literárias, numa de suas frases enquanto personagem que teoriza a literatura, o narrador diz: “Os personagens de meu romance são minhas próprias possibilidades, que não foram realizadas”, assim como em outros fragmentos em que o autor intervém em primeira pessoa para falar da literatura ou da obra, deixando a ficção à mostra, sem melindres.
É curioso também o motivo que levou Tereza a se interessar por Tomas: ele estava lendo um livro no café onde ela trabalhava.
E mais uma coisa: havia um livro aberto sobre a mesa. Naquele café, ninguém jamais abrira um livro sobre a mesa. Para Tereza, o livro era o sinal de reconhecimento de uma irmandade secreta. De fato, contra o mundo de grosseria que a cercava, tinha uma só arma: os livros que tomava emprestados na biblioteca municipal; sobretudo os romances: lia-os em quantidade, de Fielding a Thomas Mann. Eles lhe ofereciam uma chance de evasão imaginária, arrancando-a de uma vida que não lhe trazia nenhuma satisfação, mas tinham também para ela um sentido como objetos: gostava de passear na rua com livros debaixo do braço. Eram para ela o que a elegante bengala era para um dândi do século passado. Eles a distinguiam das outras.
Também merece destaque a crítica de Kundera ao movimento kitsch na arte e inclusive na política. O termo kitsch é um empréstimo do alemão e, quando o assunto é estética, serve para designar a arte que se caracteriza pela vulgaridade, banalidade, sentimentalismo, breguice, destinados ao consumo de massa. Vejamos um fragmento que fala a respeito disso:
Esta é uma palavra alemã que apareceu em meados do sentimental século xix e que em seguida se espalhou por todas as línguas. Mas o uso frequente do termo apagou seu valor metafísico original: o kitsch, em essência, é a negação absoluta da merda; tanto no sentido literal como no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.
A primeira revolta interior de Sabina contra o comunismo não tinha um caráter ético, mas estético. O que lhe repugnava não era tanto a feiura do mundo comunista (os castelos convertidos em estábulos), mas a máscara de beleza com que ele se cobrira, isto é, o kitsch comunista. O modelo desse kitsch era a chamada festa do Primeiro de Maio.
E sobre o kitsch na política. Quem já não viu esta cena?
Ninguém sabe disso melhor do que os políticos. Assim que percebem uma máquina fotográfica por perto, correm até a primeira criança que veem para levantá-la nos braços e beijá-la na face. O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os movimentos políticos.
Todas essas reflexões e críticas são muito interessantes e enriquecem a leitura, mas o clímax, isto é, o ponto alto da narrativa, em minha opinião, é o capítulo final "O sorriso de Kariênin". Nesse capítulo há uma quebra de expectativa e acontece algo muito tocante, que fará seu coração se apertar, sua garganta dar um nó e seus olhos se encherem de lágrimas, a menos que você tenha um coração empedernido.
Talvez ao ler esse capítulo você se pergunte: "Mas isso não seria uma manifestação kitsch de sentimentalismo?". Eu diria que não, porque o sentimentalismo kitsch se esvazia de sentido pelo seu caráter repetitivo, imitativo, trata-se de uma emolução de sofrimento, enquanto que neste último capítulo o sofrimento é autêntico, é verossímil, conseguimos nos colocar no lugar dos personagens e sentir a sua dor.
Se você já leu, deixe seus comentários e, se ainda não leu, espero ter despertado seu interesse.
Boas leituras e até a próxima!