Como é muito difícil
encontrar oficinas on-line de tradução literária, especialmente de espanhol, de
vez em quando eu leio um livro nas duas línguas — espanhol e português — como
exercício, para aprender com o trabalho de outros tradutores, observando suas
escolhas, estratégias e soluções.
Desta vez escolhi um
romance que tem como pano de fundo o sertão, a escolha foi proposital, pois meu
objetivo era observar como traduzir para outra língua elementos típicos da
cultura e do bioma sertanejos, tais como fauna, flora, culinária, indumentária,
tipos sociais, costumes e falares do sertanejo, etc.
A dificuldade de
traduzir um romance regional reside na falta de correspondentes no outro idioma
porque o referente — seja ele concreto ou abstrato — inexiste na cultura de
chegada.
Como levar ao leitor
estrangeiro uma realidade totalmente diferente da sua?
Como traduzir, por
exemplo, termos como caatinga, cangaço, jagunço, alpercatas, coiteiro, coronel,
mandacaru, cabra da peste, cerrado, mau-olhado, corpo fechado e tantos outros? E,
ainda, como reproduzir em outro idioma um sotaque ou um falar típico?
Ao traduzir uma obra
regionalista há duas estratégias: a domesticadora,
que consiste em criar um texto fluente que não pareça uma tradução, eliminando
ao máximo a estranheza sintática, as marcas regionais e culturais,
substituindo-as por referências locais, familiares ao leitor; ou a estrangeirizante, que consiste em levar
o leitor ao lugar, conservando todas as referencias do original e deixando
transparecer a estranheza.
Essa dicotomia foi defendida
por Schleiermacher, o qual tinha uma preferência clara pela segunda estratégia,
a estrangeirizante, em oposição a uma tendência dominante na época, imposta,
sobretudo, pelos franceses de fazer traduções tão domesticadoras que poderiam
ser consideradas adaptações e que lhes valia a alcunha de “belas infiéis”, pois
modificavam os textos estrangeiros a tal ponto que pareciam originalmente
escritos em francês.
Em seu livro A tradução literária, Paulo Henriques
Britto afirma que essas duas estratégias representam mais um par de ideais
absolutos inatingíveis e que, na prática, o que fazemos é adotar posições
intermediárias entre os dois extremos, evitando uma tradução radicalmente
estrangeirizante a ponto de resultar em um texto ilegível ou, no outro extremo,
uma tradução que leve a domesticação às últimas consequências de maneira que o
resultado seja outra obra, uma adaptação.
Pessoalmente, quando leio
um romance de uma cultura exótica, busco sentir o estranhamento que sentimos
quando fazemos uma viagem ao deparar com outra cultura, outra história e outra
visão de mundo. Em minha opinião é esse contato com o outro que enriquece a
experiência de ler um romance estrangeiro.
Voltando à experiência
em questão, o livro que escolhi, Entre Irmãs, embora seja ambientado no sertão, foi escrito originalmente em inglês por Frances de Pontes Peebles,
escritora brasileira nascida no Recife e criada em Miami, na Flórida. Lançado
no mercado americano, em 2009, com o nome The
seamstress (A costureira), só chegou ao Brasil no ano seguinte, publicado pela
Nova Fronteira, então como A costureira e
o cangaceiro. O romance foi traduzido a nove idiomas e adaptado para o
cinema pela Conspiração Filmes e para a TV pela Rede Globo, em formato de
minissérie com o nome Entre Irmãs.
O livro que eu li em
português foi Entre Irmãs, reedição da Editora Arqueiro, que reproduz o nome
do filme, tradução de Maria Helena Rouanet. E a versão em espanhol foi La costurera, publicado pela editora Debolsillo,
tradução de Julio Sierra e Jeannine Emery.
Uma vez que o tradutor
tem em mãos o original, começam as dificuldades e as inevitáveis escolhas:
Regionalismos intraduzíveis
Ao deparar com um
termo que não tem correspondente na cultura de chegada, uma opção é criar um
neologismo ou adaptação, tal como ocorreu, por exemplo, com a palavra sertón, neologismo que acabou
enriquecendo o acervo da língua espanhola após a tradução da obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
Outra opção é manter o termo tal qual no original. A segunda opção foi a
escolhida pelo tradutor de, La Costurera,
que manteve a grafia original, sertão.
Uma alternativa é
parafrasear o termo intraduzível, como foi feito com a palavra “tapioca”
traduzida como “panqueque de mandioca”. Ou ainda, manter o termo original
seguido de uma breve explicação: “Dicen que
el doctor es um coiteiro, un
cómplice de los malechores”.
Nomes de pessoas
Geralmente os nomes de
pessoas não se traduzem, mantêm-se os acentos e os caracteres do original, essa
foi a opção adotada pelo tradutor, que manteve as grafias originais: Emília,
Luzia, Doña Conceição, Antônio Teixeira, los Coelho, etc. Já no caso dos
apelidos dos cangaceiros, faltou certa uniformidade: traduziu alguns e manteve
a grafia original de outros que poderiam ter sido traduzidos: Orejita, Inteligente, Canjica, Ponta Fina, Chico Ataúd (Chico Caixão), Medialuna,
Seguridad (Alfinete de Fralda),
Jurema, Sabiá, Zalamero (Fala Mansa),
Baiano, etc. Quando um nome é escrito em
um alfabeto muito diferente, como, por exemplo, o árabe ou o russo, é possível fazer
a transliteração, que consiste em representar
os caracteres da escrita da língua de partida pelos caracteres da língua de
chegada, Por causa disso, vemos nomes como "Ajmed",
"Yibrán" e "Jaled", quando estamos acostumados a escrever
"Ahmed", "Gibran" e "Khaled".
No livro em questão, o
apelido Neném virou Bebé na versão em
espanhol, e o apelido do chefe do bando dos cangaceiros, Carcará, em espanhol
foi traduzido como Halcón (falcão)
seguindo o original em inglês, “Hawk”. Certamente a falta de uniformidade entre
as escolas das versões em espanhol e português se deve ao fato de as duas traduções terem sido realizadas a partir de uma terceira língua, o
inglês.
Chamou minha atenção,
na versão em espanhol, a presença de duas grafias para um único nome: Luzia e
Lucía, mas percebi que a razão disso é que a primeira se referia ao nome de
uma das protagonistas, enquanto que a segunda se referia a santa Lucía, a protetora
da visão. Assim, a primeira manteve a grafia utilizada no Brasil, e a segunda a grafia do espanhol.
Topônimos e acidentes geográficos
Geralmente também não
se traduzem nomes de localidades ou acidentes geográficos, salvo quando estes
já têm sua tradução assentada, como, por exemplo, Río de Janeiro ou Bahía
de Todos los Santos. O rio San Francisco teve seu apelido
afetuoso traduzido como Viejo Chico.
Cultura e costumes
A versão em espanhol manteve
a grafia em português de praticamente todos os papéis desempenhados pelo
sertanejo: cangaceiro, jagunço, coiteiro, etc., inclusive daqueles tinham
correspondentes em espanhol, como, por exemplo, “vaqueiro”.
Em outras ocasiões,
estes apareciam acompanhados da respectiva explicação “Finalmente, para los coroneles,
los grandes terratenientes del campo”.
Achei curioso o
adjetivo “encanadeira”, utilizado para referir-se à pessoa que fazia as vezes
de ortopedista no interior. Em espanhol, o tradutor empregou o termo ensalmador,
acompanhado do aposto explicativo “el curandero
que colocaba los huesos dislocados”.
Alguns termos típicos de
crenças e costumes foram traduzidos, como, por exemplo, “mau-olhado” (mal de ojo), e outros foram mantidos em
português, como “corpo fechado”: “¿Creía
ella que pronunciando la oración del corpo
fechado protegia su cuerpo del mal?”.
Acredito que a
intenção tenha sido realçar o sabor local, conforme as palavras da própria
escritora que utilizou esse recurso no original em inglês: “Não existe tradução para
alpercatas, cangaço ou jagunço. Não são sandálias de couro, bandidos nem
vaqueiros, têm outro significado. Então, pus notas explicativas e deixei tudo
como se fala aqui, até porque pretendia reproduzir um pouco da musicalidade do
palavreado polissilábico português”.
Falares ou dialetos
Os diálogos não
apresentam marcas dialetais em português, nem em espanhol. Os diferentes
sotaques são descritos na narração, mas não são reproduzidos nos diálogos:
“Sabía
leer y escribir y hablaba con un deje de São Paulo que no guardaba ningún parecido
con su acento del noreste. No cortaba los finales de las palabras, permitía que la
‘o’ y la ‘s’ se quedaran sobre la lengua, saboreándolas antes de lanzarlas
al mundo”.
“En
presencia de Lindalva, la joven esposa de tierra adentro temía decir demasiado,
caer en sus viejos hábitos o hablar con su acento provinciano”.
“Ahora
sé que eso es falso. Su acento de Río era fuerte y exagerado”.
Outras observações
Um fato curioso que
chamou minha atenção foi que, na versão em português, menciona-se o nome de um personagem histórico, o então candidato e posteriormente presidente Getúlio
Vargas, com seu nome real, enquanto que na versão em espanhol e no original em
inglês, utilizou-se um nome fictício, “Celestino Gomes”. Não entendi o motivo
dessa discrepância.
Outro detalhe que
merece destaque na tradução é a terminologia especializada em outros âmbitos
além do cangaço e do sertão, como, por exemplo, o do mundo da costura, mencionam-se
nomes de tecidos, peças de vestuário, indumentárias da moda, e ainda, pontos de
bordado e tipos de costura.
Ou ainda, quando faz
referência à “frenologia”, pseudociência em voga no início do século XX,
que consistia no estudo da estrutura do crânio de modo a determinar o carácter
das pessoas e a sua capacidade mental. São temas muito específicos que requerem
uma precisa pesquisa terminológica por parte do tradutor.
Além de considerar a
variante da língua-fonte, ao traduzir um romance regionalista, também é preciso
considerar as variantes da língua-alvo. O espanhol é falado em mais de 20
países pelo mundo, por esse motivo, o mercado editorial costuma recomendar uma
espécie de “espanhol neutro” para conseguir a maior abrangência territorial
possível, essa meta, no entanto, é bastante utópica, pois o que viria a ser um
espanhol padrão? Uma variedade intermediária entre o espanhol hispano-americano
e o espanhol peninsular?
Por fim, cabe lembrar que
a versão ao espanhol foi fruto do trabalho de dois tradutores. Fica a dúvida: De
quem terá partido a iniciativa da parceria, dos próprios tradutores com o
objetivo de aprimorar a pesquisa histórica e terminológica ou da editora para
acelerar a publicação da tradução?
É isso aí, espero que
estes apontamentos possam ser úteis àqueles que se interessam pela tradução
literária!