Carioca que já não vive no Rio há uma
década e meia, Carlos Nougué é tradutor literário, gramático, lexicógrafo e
professor de Filosofia. Entre os autores mais importantes que traduziu, estão
G. K. Chesterton, Cervantes, Cícero, Sêneca, Santo Agostinho, Santo Tomás de
Aquino, Émile Boutroux e, na poesia, Miguel Hernández.
Diana
— Quais são as línguas que traduz e há quanto tempo é tradutor?
Carlos
Nougué — Francês, espanhol, inglês e latim. Sou tradutor desde os 30 anos
(estou com 62) e já traduzi cerca de 300 livros, uns 50 ou 60 dos quais de real
importância. Mas, mesmo entre estes, não me agradam todas as traduções que fiz.
Em verdade, agradam-me muito poucas, e mais que todas a também mais difícil
delas: A Inocência do Padre Brown, de
G. K. Chesterton.
Diana
— Fale um pouco de como tudo começou. Ser tradutor fazia parte de seus planos
ou começou por acidente?
Carlos
Nougué — De modo algum pensava em sê-lo. Como todos ou quase todos os de minha
geração, comecei a traduzir por “bico”, ou seja, em razão de dificuldades
financeiras. Quando porém percebi que tinha algum pendor para o ofício, comecei
a estudar profundamente, antes de tudo, a língua portuguesa e sua literatura –
porque, com efeito, o primeiro dever do tradutor é ser (quase) perfeito em sua
língua, e refiro-me à língua cultivada. Mas também mergulhei no estudo das
outras línguas e sua respectiva literatura, além de ocupar-me especialmente de
forjar eu mesmo, ao menos para mim, uma teoria da tradução – é que nenhuma me
satisfazia plenamente.
Diana
— De que forma sua formação em filosofia contribuiu para o ofício de tradutor?
Carlos
Nougué — Como com respeito a tudo, a (boa) Filosofia ordena a mente, torna-a
realista e exigente, dota-a de algo que é fundamental para um tradutor: a
capacidade de distanciamento crítico. Mas atenção: a Filosofia é uma ciência,
enquanto a Tradução é uma arte, e aquela está para esta assim como o
especulativo está para o prático. Como arte, ademais, requer de quem a exerce,
como já disse, um mínimo de pendor, de talento para ela.
Diana
— E a filosofia Tomista teve alguma influência em seu trabalho?
Carlos
Nougué — No mesmo sentido em que respondi à pergunta anterior, até porque não
hesito em dizer que a doutrina tomista é o ápice do pensamento humano. O mais
interessante de tudo, porém, é que da confluência do estudo e do ensino da
Filosofia com a necessidade, imposta pelo ofício de traduzir, de aprofundar-me
na língua portuguesa, resultará ainda este ano o que julgo meu trabalho mais
importante até agora: a Suma Gramatical
da Língua Portuguesa, uma gramática avançada de cerca de 700 páginas que se
publicará ainda este ano. Nela estão presentes, de algum modo ou como uma
síntese, todos os esforços e preocupações intelectuais de minha vida.
Diana
— Quais foram os principais desafios no início da carreira?
Carlos
Nougué — Além da já referida (necessidade de estudos profundos), o de ganhar
pouco no início para fazer currículo. Mas fui feliz: minha primeira tradução
para uma grande editora obteve o Prêmio Jabuti, o que obviamente fez a carreira
consolidar-se já, em algum grau.
Diana
— O que é que mais gosta de seu trabalho?
Carlos
Nougué — De meu trabalho, gostava
tanto do estudo que o aprimorava como do resultado alcançado em alguns casos –
além de que inegavelmente há algo de, digamos, lúdico em buscar e encontrar em nossa
língua a equivalência perfeita (ou quase) do plasmado em outra língua. E, se
digo gostava, é porque de fato estou
muito cansado: traduzir 300 livros em 30 anos é demasiado, e confesso que hoje
busco com afinco retirar-me do ofício.
Diana
— E o que menos gosta?
Carlos
Nougué — Ter de traduzir livros que rejeito intelectual ou artisticamente. E foi
o caso a maioria dos referidos 300...
Diana
— Como foi a experiência de traduzir uma obra tão significativa para a
literatura universal como é o Dom Quixote?
Carlos
Nougué — Antes de tudo, lembre-se de que o traduzi em parceria com José Luis
Sánchez. Depois, não me implicou nenhuma dificuldade especial, por vários
motivos: eu já era muito experiente, e experiente, ademais, em obras árduas; há
hoje muitas e excelentes edições críticas do livro, o que facilita a vida de
qualquer tradutor de uma obra clássica; já havia muitas traduções, cujos erros
pudemos assim evitar, mas de cujos acertos nos valemos sempre; etc.
Diana
— O senhor ganhou o Prêmio Jabuti de Tradução em 1993 com Cristóvão Nonato,
de Carlos Fuentes. Como foi traduzir várias obras do mesmo autor, surgiu uma
espécie de sintonia com a forma dele se expressar?
Carlos
Nougué — Salvo engano, traduzi mais de 25 obras suas. Mas tenho de confessar,
ainda que meio eufemisticamente, que sua obra não habita meu coração.
Diana
— Quais são as dificuldades de ser tradutor literário no Brasil?
Carlos
Nougué — Antes de tudo, entendo “tradução literária” em sentido lato ou
analógico, a saber, como tradução de Literatura stricto sensu, de
Filosofia, de Gramática, de Música, etc. Depois, confesso ainda que, dada tal
amplitude e a mesma variedade de línguas de que traduzo, nunca tive grandes
dificuldades na carreira; nunca deixei de ter trabalho. Por outro lado, de fato
nunca me prejudicaram as condições do tradutor no Brasil, e digo sinceramente
que acho justo, em geral, o que sempre me pagaram. Sempre vivi, razoavelmente,
de tradução – e isto me basta.
Diana
— Em suas aulas de tradução literária sempre deixou claro que o tradutor
literário deve ser extremamente fiel ao autor e à obra original. O que
significa exatamente ser fiel na tradução de um livro?
Carlos
Nougué — Contra o que propõe a maioria das teorias da tradução atuais, sustento
que a melhor tradução é a “caninamente” e pormenorizadamente fiel ao original,
não só em termos de significado, como é óbvio até por sua principalidade, mas
ainda em termos morfossintáticos, lexicais, rítmicos, sonoros e até de ordem
frasal. Naturalmente, buscamos 100% de equivalência, digamos, especular, e
alcançamos o possível. Trata-se pois de algo assimptótico. Mas o importante é
que mesmo a porcentagem restante seja de algum modo também fiel. Ademais,
obviamente tal equivalência especular se vai tornando cada vez mais difícil à
medida mesma que vamos da língua mais próxima (aqui, o espanhol) à mais
distante (ponhamos o chinês). Pude experimentá-lo em certa medida: espanhol →
francês → inglês, por um ângulo → latim, por outro. E eis o que chamo regra de ouro do bem traduzir: Siga-se palavra a palavra o original até o
momento em que isso fira a índole da língua para a qual se traduz.
Diana
— Como é sua rotina de trabalho, o dia a dia?
Carlos
Nougué — Cada vez me dedico menos à tradução...
Diana
— Quais são os seus passatempos quando não está traduzindo?
Carlos
Nougué — Ocupo grande parte do tempo livre com o estudo, ou com ministrar algum
curso de Filosofia, ou agora, grandemente, com a escrita da Suma Gramatical, além da audição diária
de certa música erudita (Bruckner, Bach, Haendel, Schubert, Haydn e
outros).
Diana
— Lembra-se de alguma anedota ou gafe que possa compartilhar?
Carlos
Nougué — Se se trata de gafes alheias, tenho por princípio não comentá-las. Se
se trata das minhas, deixo ao leitor o trabalho de encontrá-las – até porque nunca reli nenhuma tradução minha
publicada.
Diana
— O que ainda gostaria de fazer como tradutor?
Carlos
Nougué — Nada...
Diana
— Poderia deixar uma dica para os tradutores principiantes?
Carlos
Nougué — Estudo, seriedade, humildade.
Algumas traduções de Carlos Nougué:
Algumas traduções de Carlos Nougué:
- Maqroll el Gaviero, antologia do poeta colombiano Álvaro Mutis (1995);
- Sangre a Sangre, antologia do poeta espanhol Miguel Hernández (1995);
- Aristóteles, de Émile Boutroux (Tradução do francês) (2000);
- Cristóvão Nonato, de Carlos Fuentes (Tradução do espanhol) (2000) - Prêmio Jabuti de Tradução em 1993;
- O Mendigo e o Professor — A Saga da Família Platter no Século XVI, de Emmanuel Le Roy Ladurie (Tradução do francês e Notas) (2000);
- Cartas a Lucílio, de Sêneca (Tradução do latim e Notas) (2001);
- Santo Tomás de Aquino, de Gilbert Keith Chesterton (Tradução do inglês e Notas) (2002);
- O Corsário, Memórias de M. Du Guay-Trouen (Tradução do francês clássico e Notas) (2003).
- D. Quixote da Mancha, de Miguel de Cervantes (edição oficial do IV Centenário da edição princeps; em parceria com José Luis Sánchez; Apresentação e Notas) (2005);
- A Natureza do Bem, de Santo Agostinho (Tradução do latim) (2005);
- Do Sumo Bem e do Sumo Mal, de Marco Túlio Cícero (Tradução do latim, Apresentação e Notas) (2005);
- A Inocência do Padre Brown, de Gilbert Keith Chesterton (Tradução do inglês e Notas) (2006).
- Tusculanas, de Cícero (Tradução do latim e Notas) (2006).