terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A tradução de obras regionalistas



Como é muito difícil encontrar oficinas on-line de tradução literária, especialmente de espanhol, de vez em quando eu leio um livro nas duas línguas — espanhol e português — como exercício, para aprender com o trabalho de outros tradutores, observando suas escolhas, estratégias e soluções.

Desta vez escolhi um romance que tem como pano de fundo o sertão, a escolha foi proposital, pois meu objetivo era observar como traduzir para outra língua elementos típicos da cultura e do bioma sertanejos, tais como fauna, flora, culinária, indumentária, tipos sociais, costumes e falares do sertanejo, etc.

A dificuldade de traduzir um romance regional reside na falta de correspondentes no outro idioma porque o referente — seja ele concreto ou abstrato — inexiste na cultura de chegada.

Como levar ao leitor estrangeiro uma realidade totalmente diferente da sua?
Como traduzir, por exemplo, termos como caatinga, cangaço, jagunço, alpercatas, coiteiro, coronel, mandacaru, cabra da peste, cerrado, mau-olhado, corpo fechado e tantos outros? E, ainda, como reproduzir em outro idioma um sotaque ou um falar típico?

Ao traduzir uma obra regionalista há duas estratégias: a domesticadora, que consiste em criar um texto fluente que não pareça uma tradução, eliminando ao máximo a estranheza sintática, as marcas regionais e culturais, substituindo-as por referências locais, familiares ao leitor; ou a estrangeirizante, que consiste em levar o leitor ao lugar, conservando todas as referencias do original e deixando transparecer a estranheza.

Essa dicotomia foi defendida por Schleiermacher, o qual tinha uma preferência clara pela segunda estratégia, a estrangeirizante, em oposição a uma tendência dominante na época, imposta, sobretudo, pelos franceses de fazer traduções tão domesticadoras que poderiam ser consideradas adaptações e que lhes valia a alcunha de “belas infiéis”, pois modificavam os textos estrangeiros a tal ponto que pareciam originalmente escritos em francês.

Em seu livro A tradução literária, Paulo Henriques Britto afirma que essas duas estratégias representam mais um par de ideais absolutos inatingíveis e que, na prática, o que fazemos é adotar posições intermediárias entre os dois extremos, evitando uma tradução radicalmente estrangeirizante a ponto de resultar em um texto ilegível ou, no outro extremo, uma tradução que leve a domesticação às últimas consequências de maneira que o resultado seja outra obra, uma adaptação.

Pessoalmente, quando leio um romance de uma cultura exótica, busco sentir o estranhamento que sentimos quando fazemos uma viagem ao deparar com outra cultura, outra história e outra visão de mundo. Em minha opinião é esse contato com o outro que enriquece a experiência de ler um romance estrangeiro.

Voltando à experiência em questão, o livro que escolhi, Entre Irmãs, embora seja ambientado no sertão, foi escrito originalmente em inglês por Frances de Pontes Peebles, escritora brasileira nascida no Recife e criada em Miami, na Flórida. Lançado no mercado americano, em 2009, com o nome The seamstress (A costureira), só chegou ao Brasil no ano seguinte, publicado pela Nova Fronteira, então como A costureira e o cangaceiro. O romance foi traduzido a nove idiomas e adaptado para o cinema pela Conspiração Filmes e para a TV pela Rede Globo, em formato de minissérie com o nome Entre Irmãs.

O livro que eu li em português foi Entre Irmãs, reedição da Editora Arqueiro, que reproduz o nome do filme, tradução de Maria Helena Rouanet. E a versão em espanhol foi La costurera, publicado pela editora Debolsillo, tradução de Julio Sierra e Jeannine Emery.

Uma vez que o tradutor tem em mãos o original, começam as dificuldades e as inevitáveis escolhas:

Regionalismos intraduzíveis

Ao deparar com um termo que não tem correspondente na cultura de chegada, uma opção é criar um neologismo ou adaptação, tal como ocorreu, por exemplo, com a palavra sertón, neologismo que acabou enriquecendo o acervo da língua espanhola após a tradução da obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Outra opção é manter o termo tal qual no original. A segunda opção foi a escolhida pelo tradutor de, La Costurera, que manteve a grafia original, sertão.
Uma alternativa é parafrasear o termo intraduzível, como foi feito com a palavra “tapioca” traduzida como “panqueque de mandioca”. Ou ainda, manter o termo original seguido de uma breve explicação: “Dicen que el doctor es um coiteiro, un cómplice de los malechores”.

Nomes de pessoas

Geralmente os nomes de pessoas não se traduzem, mantêm-se os acentos e os caracteres do original, essa foi a opção adotada pelo tradutor, que manteve as grafias originais: Emília, Luzia, Doña Conceição, Antônio Teixeira, los Coelho, etc. Já no caso dos apelidos dos cangaceiros, faltou certa uniformidade: traduziu alguns e manteve a grafia original de outros que poderiam ter sido traduzidos: Orejita, Inteligente, Canjica, Ponta Fina, Chico Ataúd (Chico Caixão), Medialuna, Seguridad (Alfinete de Fralda), Jurema, Sabiá, Zalamero (Fala Mansa), Baiano, etc.  Quando um nome é escrito em um alfabeto muito diferente, como, por exemplo, o árabe ou o russo, é possível fazer a transliteração, que consiste em representar os caracteres da escrita da língua de partida pelos caracteres da língua de chegada, Por causa disso, vemos nomes como "Ajmed", "Yibrán" e "Jaled", quando estamos acostumados a escrever "Ahmed", "Gibran" e "Khaled".

No livro em questão, o apelido Neném virou Bebé na versão em espanhol, e o apelido do chefe do bando dos cangaceiros, Carcará, em espanhol foi traduzido como Halcón (falcão) seguindo o original em inglês, “Hawk”. Certamente a falta de uniformidade entre as escolas das versões em espanhol e português se deve ao fato de as duas traduções terem sido realizadas a partir de uma terceira língua, o inglês.

Chamou minha atenção, na versão em espanhol, a presença de duas grafias para um único nome: Luzia e Lucía, mas percebi que a razão disso é que a primeira se referia ao nome de uma das protagonistas, enquanto que a segunda se referia a santa Lucía, a protetora da visão. Assim, a primeira manteve a grafia utilizada no Brasil, e a segunda a grafia do espanhol.

Topônimos e acidentes geográficos

Geralmente também não se traduzem nomes de localidades ou acidentes geográficos, salvo quando estes já têm sua tradução assentada, como, por exemplo, Río de Janeiro ou Bahía de Todos los Santos. O rio San Francisco teve seu apelido afetuoso traduzido como Viejo Chico.

Cultura e costumes

A versão em espanhol manteve a grafia em português de praticamente todos os papéis desempenhados pelo sertanejo: cangaceiro, jagunço, coiteiro, etc., inclusive daqueles tinham correspondentes em espanhol, como, por exemplo, “vaqueiro”.
Em outras ocasiões, estes apareciam acompanhados da respectiva explicação “Finalmente, para los coroneles, los grandes terratenientes del campo”.

Achei curioso o adjetivo “encanadeira”, utilizado para referir-se à pessoa que fazia as vezes de ortopedista no interior. Em espanhol, o tradutor empregou o termo ensalmador, acompanhado do aposto explicativo “el curandero que colocaba los huesos dislocados”.

Alguns termos típicos de crenças e costumes foram traduzidos, como, por exemplo, “mau-olhado” (mal de ojo), e outros foram mantidos em português, como “corpo fechado”: “¿Creía ella que pronunciando la oración del corpo fechado protegia su cuerpo del mal?”.

Acredito que a intenção tenha sido realçar o sabor local, conforme as palavras da própria escritora que utilizou esse recurso no original em inglês: “Não existe tradução para alpercatas, cangaço ou jagunço. Não são sandálias de couro, bandidos nem vaqueiros, têm outro significado. Então, pus notas explicativas e deixei tudo como se fala aqui, até porque pretendia reproduzir um pouco da musicalidade do palavreado polissilábico português”.

Falares ou dialetos

Os diálogos não apresentam marcas dialetais em português, nem em espanhol. Os diferentes sotaques são descritos na narração, mas não são reproduzidos nos diálogos:

Sabía leer y escribir y hablaba con un deje de São Paulo que no guardaba ningún parecido con su acento del noreste. No cortaba los finales de las palabras, permitía  que la  ‘o’ y la ‘s’ se quedaran sobre la lengua, saboreándolas antes de lanzarlas al mundo”.

En presencia de Lindalva, la joven esposa de tierra adentro temía decir demasiado, caer en sus viejos hábitos o hablar con su acento provinciano”.

Ahora sé que eso es falso. Su acento de Río era fuerte y exagerado”.

Outras observações

Um fato curioso que chamou minha atenção foi que, na versão em português, menciona-se o nome de um personagem histórico, o então candidato e posteriormente presidente Getúlio Vargas, com seu nome real, enquanto que na versão em espanhol e no original em inglês, utilizou-se um nome fictício, “Celestino Gomes”. Não entendi o motivo dessa discrepância.

Outro detalhe que merece destaque na tradução é a terminologia especializada em outros âmbitos além do cangaço e do sertão, como, por exemplo, o do mundo da costura, mencionam-se nomes de tecidos, peças de vestuário, indumentárias da moda, e ainda, pontos de bordado e tipos de costura.

Ou ainda, quando faz referência à “frenologia”, pseudociência em voga no início do século XX, que consistia no estudo da estrutura do crânio de modo a determinar o carácter das pessoas e a sua capacidade mental. São temas muito específicos que requerem uma precisa pesquisa terminológica por parte do tradutor.

Além de considerar a variante da língua-fonte, ao traduzir um romance regionalista, também é preciso considerar as variantes da língua-alvo. O espanhol é falado em mais de 20 países pelo mundo, por esse motivo, o mercado editorial costuma recomendar uma espécie de “espanhol neutro” para conseguir a maior abrangência territorial possível, essa meta, no entanto, é bastante utópica, pois o que viria a ser um espanhol padrão? Uma variedade intermediária entre o espanhol hispano-americano e o espanhol peninsular?  

Por fim, cabe lembrar que a versão ao espanhol foi fruto do trabalho de dois tradutores. Fica a dúvida: De quem terá partido a iniciativa da parceria, dos próprios tradutores com o objetivo de aprimorar a pesquisa histórica e terminológica ou da editora para acelerar a publicação da tradução?

É isso aí, espero que estes apontamentos possam ser úteis àqueles que se interessam pela tradução literária!



terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Literatura e gramática




Ao pensar na relação gramática-literatura, a primeira coisa que me vem à mente é a minha própria experiência: quando adolescente, eu amava a literatura, mas detestava a gramática. Lembro-me bem de uma ocasião em que a professora tentava explicar a diferença entre as subordinadas causais e as coordenadas explicativas, e tudo o que eu mais queria naquela hora era transformar-me em um pastor de ovelhas, em um ermitão ou em coisa que o valha. Em outras palavras, o que eu mais queria era fugir de tudo aquilo. Minha postura era totalmente arrogante em relação à gramática e à redação, eu gostava de frases de efeito do tipo “metamos o martelo nas teorias...”, do escritor francês Vitor Hugo. Mal sabia eu que o caráter revolucionário do Romantismo defendia a liberdade de criação e de expressão, o fim dos padrões estéticos e não o fim da gramática!

Eu só conseguia me concentrar no martelo quebrando tudo, não prestava atenção ao restante da frase: “Metamos o martelo nas teorias, nas poéticas e nos sistemas. Abaixo este velho reboco que mascara a fachada da arte! Não há regras nem modelos além das leis da natureza, que planam sobre toda a arte, e das leis especiais que, para cada composição, derivam das condições próprias de cada assunto". Eu não conseguia enxergar a precisão gramatical  por tras daquela frase, que permitia que o autor se expressasse com clareza e perfeição.

Por outro lado, um dos meus passatempos favoritos era ler e reler os contos do escritor britânico Oscar Wilde, que se destaca pelo extremo gosto pela beleza. O autor da época vitoriana pertenceu ao realismo e se identificou especificamente com o esteticismo inglês, movimento artístico baseado na doutrina de que a arte existe para benefício de sua exclusiva beleza e que esta deve ser elevada acima da moral e dos temas sociais na literatura.

Parece contraditório, não?

Anos mais tarde, após estudar letras e ter a oportunidade de trabalhar como professora de língua portuguesa e literatura, pude entender que a escrita, principalmente a literária, não é um dom inato, uma dádiva que o autor invoca como um xamã. Entendi que a estética literária é fruto, sim — em parte —, da criatividade e da inspiração, mas também de muito trabalho e reflexão e, que, ao contrário do que eu imaginava, a gramatica não é um instrumento de opressão e tortura, mas um meio que nos permite acessar e manifestar o belo.

Hoje, passados mais de dez anos de dedicação exclusiva à tradução, a minha relação com a gramática é de gratidão e admiração. Quando falo de gramática, não me refiro a uma visão meramente prescritiva e normativa, mas às associações conceituais, à estilística e às funções exercidas por cada elemento que compõe esse sistema vivo e pulsante chamado língua. Uma boa estratégia para ensinar gramática é ensiná-la contextualizada por meio da literatura, para mostrar que aquela não é um reboco que engessa e tolhe a arte, mas sim o contrário: o acabamento que enfatiza sua beleza e forma.

Em certa ocasião, já na faculdade, na aula de Teoria da Literatura, o professor falava sobre o movimento literário do Romantismo, e eu fiz um comentário sobre a sua relação com a Revolução Francesa. O professor me constrangeu diante da turma dizendo que assim eu estava "matando" a literatura, que se eu me interessava por História deveria procurar outro curso... Como se os escritores fossem seres alheios à realidade e à sociedade... Por que tratar a literatura como algo sagrado acima do bem e do mal, acima do próprio homem? "A literatura é. E ponto" essa era a definição de literatura defendida pelo tal professor. Desculpem o desabafo.


educador.brasilescola.uol.com.br