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quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Resenha do livro A rebelião das massas, de Ortega y Gasset


Há poucos dias terminei de ler La rebelión de las masas (A rebelião das massas), do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955). Mesmo tendo sido escrita por volta de 1930, é uma obra muito atual, que descreve um fenômeno visível e predominante nos dias atuais: o homem-massa. Aproveito enquanto as impressões ainda estão frescas em minha mente para escrever esta resenha.

Primeiramente, o autor deixa bem claro que essa definição não se refere a uma camada social, não se trata de uma classe específica, mas sim de uma forma de ser, de agir, de encarar a vida. Uma postura diante da realidade.

Para o autor, o homem-massa é resultado da combinação de vários fatores: o salto populacional na Europa, que em doze séculos (do século VI ao ano 1800) não conseguia superar os 180 milhões e que, em menos de um século, de 1800 a 1914, pula de 180 milhões a 460 milhões, isto é, mais do que duplica. Esse extraordinário crescimento populacional dá lugar às aglomerações, as cidades se enchem de pessoas. O que, aliado à democracia liberal, à industrialização e à ciência resulta no surgimento do homem-massa.

Mas o que seria esse homem-massa? Como dissemos anteriormente, não se trata de uma categoria social, mas sim de um modo de ser. O homem-massa corresponde ao homem médio, que se contenta em seguir a corrente, que despreza a tradição, não tem senso histórico, não tem grandes aspirações além de ser como os outros. Comporta-se como uma criança mimada e ingrata que só sabe exigir e choramingar, e que espera que o Estado resolva todos seu problemas. Está sempre esperneando, berrando por direitos, mas não tem senso de dever, de responsabilidade. Tende à violência, acredita que o progresso atual caiu do céu, não o reconhece como fruto do sacrifício e trabalho das gerações anteriores.

Sua responsabilidade se limita a exigir, preocupa-se em resolver os problemas estruturais da sociedade, em perseguir utopias em lugar de concentrar-se em resolver problemas pontuais. Age de forma superficial e preguiçosa, não busca um conhecimento profundo de causas e consequências, contenta-se com um conhecimento parcial e superficial daquilo que possa usar a seu favor, ainda que de forma distorcida, o que deriva na desonestidade intelectual, no relativismo moral e ético, em que o julgamento moral varia conforme seus interesses. Age como um bárbaro porque recusa normas, hábitos e a razão.

Como oposto ao homem-massa, o autor menciona o homem nobre. Novamente não no sentido de classe social, de posses ou títulos, mas sim de postura, de forma de ser. O homem nobre é o oposto do homem-massa porque ele tem senso histórico, respeita a tradição, as conquistas de seus antepassados. Ele tem senso de dever, de responsabilidade. Não espera que o Estado resolva seus problemas, não entrega seu destino nas mãos do Estado. Ele é dono do seu destino e busca o aperfeiçoamento mediante o esforço e o compromisso. Não pretende resolver os problemas estruturais, mas sim os pontuais, não quer mudar o mundo, mas melhorá-lo. Valorizam os valores e a moral civilizatórios, a disciplina, a ordem e a lei.

Partindo dessa comparação entre homem-massa e homem nobre, o autor analisa outras questões mais profundas, como o declínio da Europa. Por declínio, se refere ao fato de a Europa ter perdido seu poder de mando. O autor enfatiza que toda sociedade é hierárquica, há sempre uma minoria dominante e uma massa média e, se assim não for, não há organização, não há sociedade. Esclareça-se que essa minoria não é dominante ao acaso, mas sim devido a sua excelência e autenticidade, ao seu senso de dever para com os outros. A sociedade sem mando é como uma turma de alunos que, quando se fica sem professor, fica sem rumo e se entrega à confusão e à balbúrdia. Voltando à Europa, Ortega y Gasset defende sua união e sua diversidade, mas reconhece a falta de uma estrutura estatal comum para isso. A falta de mando resulta no enfraquecimento da Europa, o que dá lugar a nacionalismos e governos totalitários como o fascismo e o comunismo, que repetem os erros do passado.

O homem-massa carece de projetos, aspirações, premissas, não reconhece a autoridade da minoria dominante, pelo contrário, deseja mandar e tomar-lhe o lugar em benefício próprio. Enquanto o homem humilde reconhece suas limitações, mas aspira ao aperfeiçoamento, o homem-massa exalta sua vulgaridade, seu direito a ignorar, vangloria-se de ser como todos, não cumpre sua vocação, não é autêntico, o que supõe uma desmoralização.  

Certamente deixei escapar muitos aspectos importantes da obra, mas o que mais me marcou foi seu caráter atual, como o homem-massa continua predominando em nossa sociedade, mesmo tendo passado quase um século da publicação desta obra. Acredito que este fenômeno é perceptível em todos os campos de conhecimento. Na língua, por exemplo, observamos a desvalorização da norma, a ojeriza ao estudo formal, ao mesmo tempo que se exalta a vulgaridade, quando pululam nas vitrines das livrarias os livros de autoajuda com palavrões no título: é 'F*da' para todo lado.

O empobrecimento do vocabulário, a desvalorização da leitura, a tentativa de taxar a gramática, a norma-padrão e a língua culta como instrumentos de opressão. A busca pelo conhecimento fácil e supérfluo, através de macetes. O desdém pelos clássicos da literatura nacional e universal, a degradação da hierarquia na relação professor-aluno e o reflexo das reivindicações políticas na língua com a imposição da linguagem não sexista, e o discurso do politicamente correto. Atualmente, são esses, em minha opinião, alguns sinais da massificação e a manipulação da linguagem e do pensamento.

Para quem tiver interesse em saber mais sobre este livro, indico dois excelentes vídeos no YouTube:

Este é em espanhol, do canal POLIZONYNAUFRAGO


E este outro é em português, do canal Socran:


segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Por que ler romances históricos?

Primeiramente é importante estabelecer a diferença entre romance histórico e romance de época. O primeiro consiste em uma ficção que tem como pano de fundo algum acontecimento histórico real, como, por exemplo, as guerras napoleônicas no romance Guerra e Paz, de Liev Tolstói, nesse tipo de romance há um compromisso com os fatos históricos. O segundo, por sua vez, não tem compromisso algum com a realidade, seu foco são os costumes da sociedade de uma época, como, por exemplo a sociedade carioca do século XIX em Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Para quem tem vontade de conhecer mais a fundo alguns acontecimentos que marcaram época, os romances históricos são um prato cheio. Particularmente gosto muito desse tipo de romance porque é como uma viagem no tempo que nos permite conhecer fatos históricos, sociais e culturais. Diferentemente dos sisudos livros didáticos, os romances históricos estão carregados de uma boa dose de emoção e fantasia e por isso são mais fáceis de assimilar.

El sueño del celta

Do escritor peruano Mario Vargas Llosa, é um romance publicado em 2010, que narra a vida do legendário irlandês Roger Casement, o primeiro dos europeus a denunciar os horrores do colonialismo no Congo Belga e, posteriormente, na Amazônia peruana. Duas viagens memoráveis que mudariam Casement para sempre e que resultariam nos relatórios que abririam os olhos da sociedade europeia para as atrocidades cometidas contra os nativos congoleses e os índios peruanos. Ambos foram explorados como mão escrava para a extração do látex, no auge do comércio da borracha. Ao denunciar os horrores do colonialismo, Casement se torna simpatizante e ativista da causa irlandesa contra o domínio inglês, o que lhe rende a acusação de traição, afinal ele trabalhava como diplomata para a coroa inglesa.

A saga começa no Congo em 1903 e termina em uma prisão de Londres, numa manhã de 1916. Ao ser preso, acusado de traição contra a Inglaterra, sua vida pessoal é esculhambada com a publicação de uns diários íntimos, que revelam supostas aventuras homossexuais de veracidade duvidosa, o que lhe valeu o desprezo de muitos compatriotas, visto que naquela época a homossexualidade era considerada um crime. Difamado pela opinião pública, corre o risco de ser executado na forca.




El hereje

Do escritor espanhol Miguel Delibes, é um romance publicado em 1998, ambientado na Espanha da primeira metade do século XVI, e que narra a vida de um comerciante de peles, Cipriano Salcedo, cujo nascimento, além de causar a morte da mãe, coincide com a data em que Martinho Lutero fixou suas 95 teses na porta da igreja de Wittenber, 31 de outubro de 1517. Essa coincidência de datas marcaria tragicamente seu destino.

O autor traça um vivo retrato da cidade de Valladolid da época do rei Carlos I (imperador Carlos V do Sacro Império Romano Germânico), de uma Espanha que atravessa um período de convulsões políticas e religiosas. Em termos políticos, aborda a revolta dos comuneros, episódio em que as comunidades de Castilha se sublevaram contra o rei, porque não aceitavam que Castilha fosse governada por um estrangeiro, uma vez que Carlos nascera em Flandres, na Bélgica. Os comuneros queriam que Juana — mãe de Carlos e filha dos reis católicos Isabel e Fernando —, conhecida como Juana la loca, assumisse o trono. Ela se encontrava presa no castelo de Tordesillas desde que fora declarada louca. Mas, quando o levantamento comunero a libertou e exigiu que ela encabeçasse a revolta, Juana se negou a ir contra o filho Carlos. Este derrotou os revoltosos e voltou a enclausurar a mãe no castelo.

Por outro lado, em termos religiosos, havia um conflito entre a igreja católica e as correntes protestantes e reformistas defendidas por Lutero e Erasmo de Roterdã, que começavam a se introduzir na península de forma clandestina. Esta obra também fala do Concílio de Trento, mediante o qual Carlos I tenta conciliar as diferenças entre católicos e protestantes, a fim de se engajar na guerra contra os turcos. A Dieta Worms, também mencionada no livro, foi uma tentativa malograda de resolver a disputa. Martinho Lutero acusou Roma de exercer tirania e acabou excomungado pelo papa Leão X.

Mas voltemos ao nosso protagonista Cipriano Salcedo. Acusado de parricida pelo pai, Cipriano vivia atormentado pela culpa e não conseguia apaziguar suas inquietudes espirituais na religião católica, até que acaba encontrando conforto numa fraternidade secreta de protestantes, na qual se torna ativista e propagador e, como consequência, acaba perseguido pela implacável Inquisição. Além da questão da turbulência política e religiosa, merece destaque também o caráter empreendedor de Cipriano que, de comerciante de peles, acaba se tornando um empresário no mundo da “moda”, ao transformar um rudimentar casaco de pele e lã usado pelos camponeses em uma peça cobiçada pela alta sociedade.

Largo pétalo de mar

O mais recente romance da escritora chilena Isabel Allende é uma viagem através da história do século XX. Narra a proeza dos imigrantes espanhóis republicanos que, em 1939, após a derrota na Guerra Civil e a vitória do general Franco, travam uma arriscada fuga de Barcelona rumo à França e, depois de sofrer uma série de privações nos campos de refugiados, vislumbram uma oportunidade de iniciar uma nova vida no Chile. Isso graças ao poeta chileno Pablo Neruda que, comovido com a situação dos exilados, se mobiliza para obter do governo chileno o compromisso de acolher a mais de 2 mil refugiados espanhóis. Assim, a bordo do navio Winnipeg, fretado pelo poeta, atravessam o oceano Atlântico rumo ao Chile, “esse largo pétalo de mar y nieve”, nas palavras de Neruda.

Este foi meu primeiro contato com a literatura de Isabel Allende e, sem dúvida, pretendo ler mais obras dela em breve, pois foi uma leitura muito envolvente. Tal como no filme “A casa dos espíritos”, baseado no seu romance homônimo, a autora revela grande destreza na arte de contar histórias. Com muita habilidade nos apresenta a vida de duas famílias ao longo de várias gerações, a maneira como os acontecimentos políticos afetam as vidas de milhares de pessoas, e as reações individuais diante das adversidades. 

Neste caso, aborda precisamente o período que vai de 1938 a 1994, que abrange a Guerra Civil espanhola, a Segunda Guerra Mundial e, por fim, o golpe militar no Chile, em 11 de setembro de 1973. Quando, sob as ordens de Augusto Pinochet, os militares chilenos derrubaram o governo Salvador Allende. O presidente foi morto em circunstâncias não esclarecidas e Pinochet instaurou uma ditadura militar truculenta que se estendeu até 1990.

Embora a obra seja um reflexo de suas próprias experiências familiares, uma vez que Isabel é sobrinha do presidente chileno deposto pelo golpe, Salvador Allende, e tendo sido ela mesma uma exilada na Venezuela, como autora consegue manter certo distanciamento, abstendo-se de emitir juízos categóricos. Ao menos foi essa minha impressão. 

Para finalizar, quando busco uma boa razão para ler os romances históricos, vem-me à mente o argumento de Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos?, isto é, por que não lê-los? Além disso, para exercer o ofício com alguma propriedade, o tradutor deve contar com um conhecimento mínimo da história, cultura, costumes e tradições tanto do país da língua de partida como do país da língua de chegada, assim como uma ampla cultura geral sobre conflitos, geografía, arte, religiões, história, entretenimento, ciências naturais, esportes, etc. 

Tal como disse Miguel de Cervantes "Quem lê muito e anda muito, vê muito e sabe muito".


quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Impressões tradutórias e literárias

Bom dia, queridos leitores! Espero que tenham desfrutado das festas de fim de ano ao lado — ou ainda, em pensamento — de pessoas queridas e que comecem o ano com o pé direito e com muita esperança.

De minha parte, para começar bem o novo ano, nada como um post sobre literatura e tradução... minhas fraquezas, uma vez que não posso resistir a elas. Quem acompanha minhas publicações conhece minha fascinação pelo mundo dos livros. No entanto, como tradutora e amante das letras, quando leio um livro não posso abster-me de prestar atenção ao trabalho com o texto. E quando se trata de uma tradução, concentro-me na naturalidade, na fluidez, nos idiomatismos, nas referências culturais, etc. Para mim, a leitura, antes de mera distração, é também um exercício e um instrumento de reflexão.

Em se tratando de tradução literária, sou partidária das teorias que defendem que o bom tradutor é aquele que aparece o mínimo possível, que modestamente se apaga em nome do original, isto é, que tenta reproduzir para o leitor, da maneira mais fiel possível, a experiência que este teria se pudesse ler o original. Não é esta, por si só, uma tarefa suficientemente louvável? Discordo da ideia de que a diferença entre o original e a tradução seja mero preconceito. Existe, sim, uma relação de subordinação da tradução para com o original, por tanto, traduzir é uma tarefa servil, subserviente. Não vejo problema nenhum nisso, pelo contrário, aí reside sua grandeza.

Discordo das teorias que defendem uma intervenção direta do tradutor, introduzindo nos textos alguma passagem destoante, como um anacronismo, uma gíria atual em um romance de outra época, por exemplo, de forma deliberada, para que o leitor perceba que está lendo uma tradução. Em minha opinião, essa é uma forma espúria de fazer-se visível.

Recentemente, ao ler o livro Misto-quente, de Charles Bukowski, tradução de Pedro Gonzaga, observei duas formas positivas e lícitas, a meu ver, de o tradutor fazer-se visível: por meio da apresetanção do livro e das notas do tradutor.

É claro que para isso é necessário o aval da editora. Merece reconhecimento a atitude da LP&M que abriu para o tradutor um espaço geralmente reservado ao próprio autor, a outro escritor ou a um crítico literário: a apresentação. Parece-me uma decisão inteligente, já que o tradutor tem uma visão ampla, mas ao mesmo tempo singular da obra, resultado do contato íntimo e intenso com esta. De fato, a apresentação do livro em questão ficou muito boa: reveladora na medida certa sem estragar a surpresa ou, como se diz por aí, sem spoiler. Essa sim é uma forma legítima de o tradutor aparecer.

Outra participação louvável foi a inclusão de notas do tradutor (n.t.). Embora alguns as vejam como um sinal da incapacidade de lidar com os problemas de tradução no próprio texto, ou ainda, como um recurso invasivo ou condescendente com o leitor, acredito que, em algumas situações, não só são admissíveis como também necessárias. No livro em questão, o tradutor incluiu diversas notas sobre o futebol americano, personagens e fatos históricos ou culturais, todas muito pertinentes. Neste caso, considero um recurso válido, uma vez que enriquece a leitura e sacia a curiosidade do leitor.

Já no campo literário, em uma época em que impera a hipocrisia do politicamente correto, é libertador ler um desabafo honesto, despido de escrúpulos, de alguém que se sente desajustado e que expressa sua insatisfação com uma crueza que, embora possa incomodar em alguns momentos, também é capaz de despertar empatia e compaixão. Misto-quente é um romance de formação que questiona a influência do meio sobre o indivíduo. Relata a infância, a puberdade e o início da vida adulta de Henry Chinaski, um garoto alemão que aos três anos de idade se muda com a família para os bairros pobres de Los Angeles.

Por meio da ligação de lembranças e impressões, o narrador-protagonista reconstrói seu trágico desenvolvimento relatando os momentos que mais o marcaram: a sensação de ter sido adotado, a indiferença da mãe e o sadismo do pai, que o surrava pela mínima razão; as dificuldades financeiras e familiares por ocasião da grande depressão; o tormento e o sofrimento físico devido a um caso extremo de espinhas; a dificuldade de relacionar-se com ou outros e o bullying. Tudo isso vai matando a esperança do garoto, que mergulha cada vez mais no pessimismo e na degradação, buscando refúgio na bebida e extravasando sua frustração contra poucos que ainda o procuram.

A linguagem soez reflete as misérias das lembranças. O estilo direto e impudico do autor, livre de subertfúgios, rendeu-lhe o estigma de escritor de segunda linha, malgrado seu talento criativo. Alguns dizem que há muito de Bukowski em suas histórias e personagens. Pedro Gonzaga, o tradutor, em sua apresentação, contesta essa afirmação dizendo que "O forte caráter autobiográfico que pode, com certeza, ser encontrado ao longo de toda obra é somente o meio e nunca o fim.".

Nietzsche disse uma vez "Quem tem um porque pode suportar qualquer como". Mas e quem não o tem? Para este, a existência se torna insuportável, restando somente a desolação. A atitude de Chinaski desperta sentimentos antagônicos, se por um lado seu sofrimento invoca piedade; por outro lado, sua impassividade e indiferença causam repulsa.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Resenha do livro Nós, de Yevgeny Zamyatin

Já aconteceu de você ler um livro há muito tempo e e desejar relê-lo, mas não conseguir lembrar-se do nome nem do autor? Pois foi o que aconteceu comigo com o livro em questão. A primeira vez que o li, eu tinha entre 12 e 13 anos, ou seja, isso foi entre 1986 e 1987, se não me falha a memória. Mesmo sem ter entender tudo literalmente, já que era uma leitura difícil para a minha idade, foi um daqueles livros que me marcou com sua prosa diferenciada e poética, e também com o enredo perturbador, daqueles que tira o leitor de sua zona de conforto.

Refiro-me a Nós, de Yevgeny Zamyatin (cujo nome é transliterado ao português como Eugene Zamiatin).

Primeiramente vou contar como aconteceu o déjà-vu... Como eu disse, fiquei com esse livro na memória, mas a única coisa que eu lembrava bem é que as personagens não tinham nome, e sim números. Além disso, eu sabia que o autor tinha um nome difícil, provavelmente russo. Parecia-me que tratava de autômatos, então achei que fosse Eu Robô, de Isaac Asimov, mas não... E assim fui procurando entre livros de robôs e ficção científica, e pesquisando na internet, sem sucesso.

Edição recente publicad pela Editora Aleph
Até que dias atrás, várias décadas depois, casualmente, ao navegar pelas publicações do Instagram, vi um post da Editora Aleph — que se destaca por publicar clássicos da literatura de ficção, repletos de robôs, espaçonaves e tudo o que faz a cabeça do público nerd. Figuram entre suas publicações autores como Philip K. Dick (Um Reflexo na Escuridão), William Gibson (Neuromancer), Isaac Asimov (Eu, Robô), Anthony Burgess (Laranja Mecânica), etc. — com a foto de uma capa de livro que chamou minha atenção, comecei a ler os comentários, e eis que deu aquele estalo: “não é possível!”, “será?”... Pois não é que se tratava do livro que eu procurava há tanto tempo?

Nem preciso falar que saí à caça da edição que havia lido de pequena, da Editora Anima, tradução do inglês de Lya Alverga Wyler, de 1983. Li uma versão em pdf que encontrei na internet, pois o preço do livro nos sebos é bastante salgado, já que se trata de uma edição esgotada para colecionadores.

Bom, agora que já falei do meu déjà-vu, vamos ao livro...


A versão que li e reli

Esta obra é considerada um romance distópico, uma distopia-mãe, inspiradora de outras obras importantes do gênero. Distopia é o contrário de utopia, ou seja, o contrário de uma sociedade ideal, uma organização social em que se vive em condições de insuportável opressão e controle. Assim, esta obra teria influenciado outras importantes obras do gênero, como 1984, de George Orwell (1948), e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1930). Foi escrita em 1920 pelo escritor russo Yevgeny Zamyatin, e publicada originalmente em inglês, em Nova Iorque, em 1924, porque assim como a maioria dos intelectuais russos do final do século XIX, Zamyatin teve uma vida agitada, exposta ao perigo, a detenções, exílio, fuga, etc., primeiro foi encarcerado pelo regime czarista e, posteriormente, pelos bolcheviques. Em russo, Nós, só foi editado em 1952 e não na URSS, mas sim em Nova Iorque. Na URSS, Nós só viu a luz depois da Perestroika. Sendo assim, acredito que haja muito de suas experiências pessoais traduzidas nesta história.

A história se desenvolve no século XXX, na cidade de vidro e aço do Estado Único, uma sociedade aparentemente perfeita, em que todos formam uma unidade padronizada, extremamente regrada e “perfeita”. Os habitantes são números, não têm nomes, e sua vida se dá em função do Estado Único e do Bem-feitor, o qual promete a felicidade em troca da liberdade. A liberdade é vista como um mal que leva o homem ao crime, ao vício, ao extermínio. Por sua vez, a felicidade consiste em apagar toda a individualidade e viver guiado pela razão e pela exatidão matemática, em outras palavras, promove-se a desumanização. Os habitantes vestem uniformes, se alimentam à base de um derivado de nafta, vivem em apartamentos transparentes, de vidro, tutelados e vigiados pelo Estado Único, que controla todas as suas atividades diárias através das Tábuas dos Mandamentos Horários. Tudo é controlado, inclusive o sexo, que é visto como mero produto adquirido mediante cupons.

O protagonista, D-503, é um engenheiro, construtor do Integral, uma nave que levará a felicidade aos seres de outros planetas, ainda sujeitos à selvagem condição de liberdade, promovendo a integralização e a igualização de tudo o que existe. Sua missão é escrever para os leitores do passado um diário onde ele registra a forma de vida e o pensamento que sustentam essa sociedade perfeita. Entretanto, ele não esperava que tal diário testemunhasse a própria transformação.

Para não estragar a experiência da leitura, vou dizer apenas que a transformação se inicia quando o nosso protagonista conhece o amor.

“— Detesto o nevoeiro. Tenho medo do nevoeiro.
— Significa isso que gostas dele. Tens medo dele por ele ser mais forte do que
tu; odeia-lo porque tens medo dele; tens medo dele porque não podes deixar de te
submeter a ele. Porque só podemos amar o indomável.”

Ah, sim, mais uma coisa que vale a pena mencionar, Zamyatin fez parte de um grupo literário russo chamado Irmãos Serapion (que tomaram seu nome de uma personagem de E.T.A. Hoffmann. Este último, aliás, é autor de uma das melhores obras — em minha opinião — da literatura fantástica, O homem da areia. Aliás, esta observação me levou a reler esta obra, a leitura é de fato um vício...), que desde o início apoiaram a Revolução e que lutaram nas fileiras do Exército Vermelho. Desde o primeiro momento, reivindicaram o seu direito de escrever com liberdade. Essa tendência se manifestou através da experimentação formal na literatura, com rupturas na linguagem, sintaxe e incorporação de novos vocábulos precedentes do folclore russo. Zamiatin foi mentor dessa tendência, por isso as metáforas e os recursos de linguagem são muito inovadores, além disso, a narrativa é muito psicológica e onírica, o que cria uma atmosfera de sonho e delírio.

Referências: Wikipédia

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Indicação de livro


Dados da obra:

Editora: S.L.U. ESPASA LIBROS
Instituto Cervantes
Idioma: espanhol
Edição: 2016
ISBN: 978-84-670-4892-6
Autores: Julio Borrego Nieto (coord.), Lorena Domínguez García, Rebeca Delgado Fernández, Álvaro Recio Diego, Carmela Tomé Cornejo

Após um aprazível descanso, estou de volta para recomendar um livro que ganhei de minha tia, Cocodrilos en el diccionario. Hacia dónde camina el español, do Instituto Cervantes, escrito mediante a colaboração de vários autores.

Por enquanto li somente a introdução e gostei bastante da temática e do estilo. Pelo que vi até então, esta obra pretende analisar as mudanças na língua espanhola através dos tempos, ou a forma como a linguagem passa das ruas ao dicionário.

Este livro nos leva a questionar fenômenos linguísticos, como por exemplo, a aceitação da forma “cocodrilo” pelos dicionários, quando sua origem é “crocodilus” com a letra “r” em outra posição, enquanto por outro lado se rejeita a forma “cocreta”, resultante de fenômeno idêntico.

Curiosamente essa corrupção da forma latina não ocorreu no português, que adotou a forma “crocodilo”, além disso, nós brasileiros, ainda acrescentamos o sufixo “-agem” e inventamos o substantivo “crocodilagem” usado informalmente para designar uma traição. O que revela que o a língua se amplia e se modifica conforme o uso e as necessidades dos falantes.

Cocodrilos en el diccionario descreve e explica com um estilo leve e ágil, acompanhado de exemplos reais, as principais marcas que caracterizam o espanhol do início do século XXI, as mudanças que ocorrem e as variantes que lutam para conquistar um espaço na norma.

A obra se divide em quatro partes: a primeira é dedicada à fonética, ou melhor, aos fenômenos da pronunciação e da escrita; a segunda é dedicada à gramática, concretamente aos fenômenos que contam com variantes em conflito; a terceira parte se ocupa do vocabulário; e a última, das manifestações concretas da fala e o papel que corresponde aos meios de comunicação e às academias na difusão e avaliação destas.

A abordagem é analítica e descritiva, utilizando os procedimentos próprios da linguística. Um livro indicado para todos aqueles que desejam saber mais sobre os mecanismos de evolução da língua espanhola.


Para ler mais detalhes sobre a obra, acesse o pacote de imprensa clicando aqui.

No Brasil, encontrei a versão digital em epub à venda pela Livraria Cultura, link.

domingo, 11 de setembro de 2016

Entrevista a Paulo Henriques Britto, em Cadernos de Tradução da UFSC

Caros leitores,

Quando o assunto é tradução literária, o livro de que mais gostei e com cujas posições mais me identifiquei é A tradução literária, de Paulo Henriques Britto. Há tempo tinha vontade de entrevistá-lo, mas nesta semana chegou a minha caixa de e-mails a notícia da publicação da nova edição dos Cadernos de Tradução da UFSC, v. 36 n. 3 (2016), onde encontrei esta maravilhosa entrevista feita pelo professor Gilles Jean Abes ao renomado tradutor. Minha única interferência foi adicionar a foto do tradutor, retirada de um artigo da versão eletrônica do jornal Folha de S. Paulo, como se indica mais abaixo. O texto da entrevista foi reproduzido integralmente conforme publicado na revista.

Achei esta entrevista excelente, pois aborda de forma muito elucidativa assuntos polêmicos como original versus tradução, fidelidade, visibilidade, teoria da morte do autor, domesticação, adaptação, etc., temas que me inquietaram muito durante minha formação. Sem dúvida, eu não teria conseguido fazer uma entrevista tão reveladora, por isso, contentei-me em pedir a autorização do tradutor e a da Editora chefe da revista, a professora Andréia Guerini, para publicar a entrevista aqui no blog. Expresso a ambos meus sinceros agradecimentos.

Espero que desfrutem da leitura tanto quanto eu.

ENTREVISTA COM PAULO HENRIQUES BRITTO

 Paulo Henriques Britto é professor de tradução, de criação literária e de literatura na PUC-Rio, além de ser um tradutor e poeta premiado. É responsável por mais de cem publicações, dentre as quais muitas obras de ficção, mas também de poesia. Uma de suas traduções mais recentes é Grandes esperanças, de Charles Dickens (2º lugar no prêmio Jabuti em 2013), publicada pela Companhia das Letras. Já traduziu Elizabeth Bishop, Wallace Stevens, D. H. Lawrence, Henry James, William Faulkner e Lord Byron, dentre os autores mais famosos. Publicou seis livros de poesia, pelos quais recebeu importantes prêmios literários: Liturgia da matéria (1982); Mínima lírica (1989); Trovar claro (1997, Prêmio Alphonsus de Guimaraens); Macau (2003, Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e Prêmio Alceu Amoroso Lima); Tarde
(2007, Prêmio Alphonsus de Guimaraens); e Formas do nada (2012, 8º Prêmio Bravo! Bradesco Prime de Literatura, Melhor Livro). Como tradutor, recebeu em 1995 o Prêmio Paulo Rónai da Fundação da Biblioteca Nacional pela sua tradução da obra A
mecânica das águas, de E. L. Doctorow. Publicou ainda o livro de contos Paraísos Artificiais, também pela Companhia das Letras, em 2004, além de numerosos artigos científicos. Sua obra A tradução literária recebeu, em 2013, o Prêmio Mário de Andrade de Ensaio Literário.

Gilles Jean Abes
Universidade Federal de Santa Catarina 

Cadernos de Tradução (CT): Em seu livro A tradução literária, cujas reflexões gostaria  de debater nas perguntas a seguir, você sustenta várias posições sobre tradução que podem gerar polêmica ou reações adversas, assim como estimulam uma reflexão sobre a tradução de literatura. Uma delas é a importância do original.
O que seria esse texto original, principalmente se pensarmos nos manuscritos de Shakespeare, frequentemente citados para desvalorizá-lo?

Paulo Henriques Britto (PHB): Há nessa argumentação uma falácia óbvia, muito comum nos que defendem posições radicais na área dos Estudos da Tradução. Vou começar com um exemplo. De vez em quando nasce um hermafrodita em algum lugar do mundo – uma criança com órgãos genitais masculinos e femininos. Uma pessoa assim é difícil de classificar como homem ou mulher, sem dúvida. Devemos concluir que a categorização dos seres humanos como masculino e feminino é uma criação cultural totalmente arbitrária, que deve ser desconstruída? Ora, basta pensar por alguns instantes para concluir que tal conclusão seria injustificada: é só lembrar que os homens não ovulam nem engravidam e as mulheres não produzem sêmen, que para a imensa maioria da humanidade faz sentido dizer que há pessoas que ovulam e potencialmente engravidam – mulheres – e outras que produzem sêmen – homens. A existência de alguns hermafroditas não altera este fato incontestável. De fato, existem vários textos diferentes que podem ser tomados como originais do Hamlet; por outro lado, há um único texto para os Sonnets de Shakespeare, e casos semelhantes ao dos Sonnets constituem a imensa maioria. Do mesmo modo, basta pensar por alguns instantes para vermos que a distinção entre original e tradução não é de todo arbitrária. Eis uma diferença: periodicamente tradutores brasileiros e portugueses realizam novas traduções dos Sonnets, ou de uma das versões do original do Hamlet; mas duvido que alguém possa citar um único caso de uma tradução brasileira ou portuguesa do Hamlet ou dos Sonnets que tenha sido usada para elaborar uma tradução para um terceiro idioma. As traduções só servem de base para outras traduções no caso muito específico em que, na cultura-fonte, não há traduções do idioma em questão.
Assim, por muito tempo as traduções brasileiras de Dostoiévski eram baseadas em versões francesas; mas tão logo surgiram bons tradutores do russo no Brasil passou-se a traduzir Dostoiévski diretamente do russo, e parece bem pouco provável que no futuro alguém no Brasil use versões francesas ou inglesas como ponto de partida para traduções de Dostoiévski. Assim, o argumento que supostamente reduz a distinção entre original e tradução a um preconceito logocêntrico é duplamente falho: primeiro, porque toma um caso excepcional para a partir dele fazer uma generalização; e segundo, porque ignora as diversas características que de fato distinguem original de tradução na cultura ocidental. Observe-se que a posição que defendo nada tem de essencialista: não estou dizendo que há diferenças essenciais entre textos ditos originais e textos resultantes de operações tradutórias. Afirmo apenas que, no atual momento da cultura ocidental, original e tradução têm características específicas que nos permitem definir essas duas categorias de modo que uma se oponha à outra. Nada impede que em outras culturas, ou que num outro momento da nossa, as coisas se deem de modo diferente.

CT: Esse apagamento do original não teria uma relação com a “morte do autor”? Seria a vereda correta a tomar, para dar visibilidade ao tradutor, a de aniquilar original e autor?

PHB: Quando, no cinema, se fala em dar visibilidade ao roteirista, o que se pretende é valorizar o trabalho do roteirista enquanto roteirista: isto é, dando-lhe crédito adequado. Se um roteirista exigir que lhe deem coautoria na direção do filme, ou que um close-up de seu rosto apareça no meio do filme, ou que seja criada uma cena musical em que ele cante e sapateie, certamente não será atendido.
Dar visibilidade para o tradutor significa estampar seu nome na página de rosto, ou na quarta capa, ou até mesmo na capa do livro, com uma fonte de tamanho razoável. Se o tradutor achar que isso é pouco, então que reivindique espaço no paratexto: introdução, prefácio, posfácio e notas. Mas o tradutor não tem o direito de alterar o enredo do livro por achá-lo pecaminoso, nem de colocar todas as ocorrências da palavra “Deus” no feminino para registrar seu repúdio da falocracia judeu-cristã, nem de incluir trechos em gíria contemporânea na tradução de uma obra do século XIX para lembrar o leitor desavisado de que o livro foi traduzido no século XXI. Os lugares para o tradutor aparecer são esses que citei acima: capas e paratexto. Apagar as fronteiras entre o autor e o tradutor é um tiro no pé, porque nega a especificidade do trabalho do tradutor.
Quanto à ideia de morte do autor, Barthes estava simplesmente criticando uma forma de crítica literária que ainda se fazia naquela época, a qual tentava explicar a obra do autor através de informações biográficas, ou tentando descobrir suas verdadeiras intenções por trás do texto. Que eu saiba, Barthes não estava dizendo que a linguagem atua espontaneamente, que os livros se escrevem sem intervenção do autor. Aos teóricos que afirmam que a linguagem escreve por conta própria, seria lícito pedir-lhes que não cobrasse direitos autorais de suas obras nem exigisse que lhe fosse dado crédito pelas ideias nelas expostas. E se aqueles que alegam que escrever e traduzir são exatamente a mesma coisa realmente acreditam no que dizem, deveriam dividir irmãmente os direitos autorais com seus tradutores.

CT: Um texto literário pode ter várias edições, com alterações feitas inclusive pelo próprio autor. Nesse sentido, o original é visto como um tipo de rascunho (Borges), ou seja, um texto passível de diferentes versões, nunca completamente finalizado. Essa atitude do autor, que busca aperfeiçoar ou alterar, sempre insatisfeito e retomando sua obra, não acaba dando espaço para que alguns teóricos da tradução desvalorizem o original, afirmando que é um simples rascunho, texto perfectível pelo tradutor que poderia corrigir erros e problemas, «melhorar a obra», para assim valorizar o seu ofício?

PHB: Na nossa cultura, considera-se que o autor tem o direito de retomar sua obra e mudá-la a seu bel-prazer. Assim, Henry James fez uma revisão minuciosa de seus principais escritos para incluí-los na New York Edition de sua obra completa. Também
Wordsworth reescreveu seus poemas de juventude na velhice. A maioria dos estudiosos aprova as versões finais de James e critica as reescritas de Wordsworth, mas o fato é que o autor tem esse direito. Por outro lado, como vou desenvolver mais adiante, o que se pede ao tradutor é que produza uma espécie de pastiche de uma obra em outro idioma cuja leitura de algum modo possa ser considerada um substituto válido para a leitura do original.
Portanto, de modo geral não se considera que caiba ao tradutor melhorar uma obra segundo seus próprios critérios de qualidade, que podem ser muito diversos dos do autor do original. Agora, tanto a primeira versão publicada de um romance de James quanto a versão incluída na New York Edition podem ser tomadas como originais pelo tradutor. O fato de haver mais de um original possível para o mesmo romance de James não abala de modo algum o conceito de original; decorre apenas do fato de o autor ter plenos direitos sobre sua própria obra. E, se o autor pode tentar melhorar sua própria obra, por que o tradutor não pode? Porque o leitor que compra um romance de James está interessado em se aproximar o máximo possível do texto de James, e não de uma versão que o tradutor considere uma versão melhorada de James.
De novo, não há nenhum essencialismo nisso: é apenas uma decorrência de como nossa cultura atualmente concebe autoria e tradução. No passado, era muito comum os tradutores se arrogarem o direito de melhorar os textos; hoje isso já não ocorre. É perfeitamente possível que no futuro isso mude, como é perfeitamente possível que em culturas muito diferentes da ocidental as coisas se deem de modo diverso. As regras do jogo da tradução, como as de qualquer outro jogo, estão sempre mudando, e não são as mesmas em todos os lugares. Mas o fato de essas regras não serem fixas e imutáveis não quer dizer que qualquer tradutor ou estudioso da tradução tem o direito de mudá-las a seu bel-prazer.
As regras do futebol são criações culturais que podem mudar, e de fato mudam, ao longo do tempo, mas nem por isso um jogador pode decidir pegar uma bola com a mão no meio de uma partida: ele levará cartão vermelho, com toda razão.

CT: Pensando aqui na dupla tradução de Maurício Cardozo da novela de Theodor Storm, Der Schimmelreiter (O centauro bronco e A assombrosa história do homem do cavalo branco), o que você entende por fidelidade?

PHB: Maurício produziu duas obras distintas: uma tradução de uma novela de Storm e uma narrativa de sua autoria, um pastiche muito criativo inspirado em Storm, Guimarães Rosa e outros autores.
O centauro não é tradução tal como o termo é entendido no mundo ocidental nos últimos cem anos, no mínimo.

CT: Você não acha que a (re)encenação dessa novela no quente e seco sertão, ao invés do cenário frio e úmido da Frísia (norte da Alemanha), problematiza o conceito de fidelidade já que, ao meu ver, elementos cruciais da novela são recriados na versão do sertão?

PHB: Sem dúvida, muita coisa da Odisseia está no Ulisses, mas não conheço ninguém que considere Joyce tradutor de Homero.
Isso em nada afeta as questões de fidelidade das traduções da Odisseia, que nada têm a ver com o romance de Joyce.

CT: Dando continuidade a esta problematização, não poderíamos distinguir uma leitura possível da obra, consciente, com um verdadeiro projeto de tradução, a exemplo do trabalho de Maurício Cardozo, de uma tradução etnocêntrica que desloca espaço, cultura e linguagem de forma inconsciente ou por causa de um leitor supostamente incapaz de acolher o Outro?

PHB: De novo, para mim, a questão é bem mais simples: A assombrosa história é uma tradução de Storm, e O centauro é uma obra original de Maurício. Não é apenas uma opinião minha: é assim que a imensa maioria dos leitores no mundo ocidental encara a questão.
Ninguém que leia um romance passado no Nordeste brasileiro acredita estar lendo a tradução de um romance passado na Frísia.
As regras que regulam o uso do conceito “tradução”, na nossa cultura e nosso tempo, não admitem que O centauro seja considerado uma tradução da obra de Storm. Já uma tradução de Storm que hoje em dia fosse considerada domesticadora continuaria sendo uma tradução, só que de uma espécie que hoje em dia a maioria dos leitores mais sofisticados rejeita. Para dar um exemplo trivial: quando me propus a traduzir as Viagens de Gulliver, consultei uma ou duas traduções mais antigas e verifiquei que numa delas a linguagem utilizada continha muitas marcas do português brasileiro contemporâneo. Além disso, nela as medidas haviam sido convertidas ao sistema métrico — assim, a altura dos liliputianos era dada em centímetros, muito embora Swift tenha escrito num tempo em que ainda não havia sido inventado o sistema métrico. Na minha tradução, não apenas mantive o sistema de pesos e medidas original como também evitei usar palavras e estruturas sintáticas que não fossem comuns no português setecentista. Fiz isso por saber que o meu público – os leitores mais sofisticados do Brasil do início do século XXI – tendem (como eu próprio, na condição de leitor) a preferir traduções mais estrangeirizantes, que levem mais a fundo o propósito de criar no leitor a ilusão de que ele está lendo uma obra redigida em outro país e em outro século.

CT: Se admitirmos que a recriação de Cardozo mantém uma postura ética da tradução (Berman), ao resgatar essa luta do homem com a natureza e o homem (os desertos do sertão e do mar da Frísia, o coronel), o conceito de adaptação seria adequado ao seu trabalho?

PHB: Eu não diria que O centauro é sequer uma adaptação. Prefiro reservar o termo para coisas como uma versão do Hamlet para mangá, ou a telenovela Grande sertão: veredas baseada em Guimarães Rosa, ou o libreto da ópera de Bizet que Meilhac e Halévy criaram com base na novela de Mérimée. Também chamaria de
“adaptação” as versões de romances de Hugo e Dickens resumidas e facilitadas para leitores infantojuvenis.

CT: Você emprega os conceitos centrífugo e centrípeto para distinguir os processos criativos do autor e do tradutor. Poderia explicar essa diferença?

PHB: Toda obra de arte de algum modo parte de obras anteriores. Para usar um conceito de Harold Bloom, por trás de cada poema há um ou mais poemas anteriores, de um ou mais poetas fortes. O poeta mais jovem, para ele próprio tentar se afirmar como um poeta forte, precisa “matar” seu pai literário, e para isso ele conscientemente se distancia de seu modelo sempre que sente que a voz do poeta anterior está excessivamente presente em seu trabalho: é o movimento centrífugo (que pode não ocorrer se o poeta se contentar em ser um epígono assumido, é claro).
Já o tradutor, ao elaborar sua tradução, por vezes se deixa levar por uma solução atraente e, ao cotejar seu texto com o original, percebe que esta solução levou sua tradução para longe demais do original; assim, ele a corrige: trata-se do movimento centrípeto (que pode não ocorrer se o tradutor, influenciado por alguma teoria que negue a ideia de fidelidade, resolver que seu poema pode e deve ser melhor do que o original).
CT: Como você entende a importância da literariedade de um texto literário?

PHB: É importante que o tradutor identifique as características que tornam o texto que ele está traduzindo uma obra literária, que lhe conferem valor estético, e se concentre na tentativa de recriar essas características na língua-meta. Caso contrário, ele corre o risco de – para usar um conceito de Benjamin – traduzir de modo equivocado algo que não é essencial no original.

CT: De que maneira poder-se-ia identificar os “elementos cruciais” de uma obra que devem ser recriados, com alguma alteração, na tradução?

PHB: Lendo o original com muita atenção com base num conhecimento aprofundado dos recursos literários do idioma do original e da tradição a que ele se filia; e elaborando com muito cuidado a tradução, com base num conhecimento aprofundado dos recursos do idioma-meta e da literatura desse idioma.

CT: Como definiria essa vivência de uma experiência de ler o texto traduzido como se estivesse lendo o original? O que seria essa experiência?

PHB: É o que a maioria esmagadora dos leitores quer: ter a experiência mais próxima possível de ler o original – que na verdade está escrito num idioma que ele não conhece – na língua que ele de fato conhece. É isso que se exige do tradutor: produzir essa ilusão (para usar o conceito de Jiří Levý) no leitor, para que ele possa, mesmo sabendo que o texto em português que ele tem na mão não foi escrito por Rilke, suspender sua descrença (como diria Coleridge) e fazer de conta que está lendo Rilke. Mas é até mais que um fazer de conta: quem lê uma boa tradução de Rilke está mesmo, num certo sentido, lendo Rilke. Podemos dizer que, dado um texto T0 no idioma α, o trabalho do tradutor é produzir um texto Tt no idioma β tal que o leitor de Tt possa afirmar, sem mentir, que leu T0. Para que ele possa fazer tal afirmação, como observa Lefevere, ele tem de se fiar no depoimento de pessoas que, dominando tanto α quanto β, se prontifiquem a ler Tt e atestem que, de fato, a experiência de ler Tt corresponde de modo significativo, ainda que não integral, à experiência de ler T0.

CT: Você concordaria com a afirmação de que o tradutor está sempre presente na sua tradução?

PHB: Sim, é inevitável. É o tradutor que se responsabiliza por suas escolhas, que fatalmente são diferentes das que seriam feitas por outro tradutor. A boa tradução é aquela que o leitor inteligente reconhece como um bom texto no seu idioma e, com base nos depoimentos de pessoas que conheçam o original e o idioma original,
conclui que tem características que lhe permitem afirmar que, ao lê-la, está num certo sentido lendo também um texto num idioma que lhe é desconhecido. Se, por outro lado, o tradutor faz questão de criar efeitos de sua própria lavra, que não correspondem a nada que se encontre no original, o texto resultante, por melhor que seja enquanto texto, pode não ser considerado uma tradução propriamente dita. É o que parece ser o caso do Rubaiyat de Edward FitzGerald e dos poemas “chineses” de Ezra Pound. Essas são as regras do jogo da tradução, tal como ele é jogado atualmente no mundo ocidental. É claro que um tradutor pode criar regras diversas,
e propor “traduções” em que o tradutor faça as mudanças que julgue necessárias para melhorar o texto original, tornando-o mais edificante, menos sexista ou menos racista; só que a maioria esmagadora dos leitores não vai considerá-las traduções. Para retomar uma analogia que emprego no meu livro: posso resolver jogar uma versão do futebol em que o jogador tenha o direito de pôr a mão na bola, ou em que haja duas bolas em campo; mas ninguém, nem os torcedores nem a FIFA, vai aceitar que isso constitua futebol.
Eventualmente, os seguidores podem ganhar força e impor seu próprio jogo: foi mais ou menos assim que surgiram o rugby e o futebol americano. Mas esses jogos modificados não são mais o futebol de associação tal como é aceito consensualmente. Você pode até preferir um desses outros jogos, mas se insistir em dizer que está jogando futebol você vai passar por excêntrico, no mínimo. No mundo do esporte, ao contrário do que ocorre no mundo dos Estudos da Tradução, as pessoas levam essas coisas mais a sério.

Recebido em: 12/03/2016
Aceito em: 18/05/2016
Publicado em setembro de 2016


segunda-feira, 27 de junho de 2016

Entrevista com a tradutora Lineimar Martins sobre o lançamento de seu livro "Memórias de uma Suburbana 'dura' que decidiu morar na Europa"

Lineimar Martins, autora de "Memórias de uma suburbana
‘dura’ que decidiu morar na Europa

Diana – Olá, Lineimar! Em primeiro lugar quero agradecer sua participação e dizer que é um grande prazer tê-la novamente aqui no blog. Para quem ainda não leu sua entrevista, Lineimar Martins é franco-brasileira, doutora em antropologia, tradutora de francês e escritora. Aliás, foi esta última qualidade que motivou a presente entrevista. Ela acaba de publicar seu livro “Memórias de uma suburbana ‘dura’ que decidiu morar na Europa”. O que a motivou a querer contar essa história?

Lineimar Vários fatores me levaram a escrevê-la. Há alguns anos, recebi o diretor de uma editora brasileira em Lyon, onde morava. Já naquela época ele havia me sugerido escrever sobre minha decisão de largar tudo no Brasil e vir para a Europa, sem dinheiro e sem conhecer ninguém aqui, dizendo que esse assunto poderia interessar a muita gente. Sugeriu também colocar uma pouco de humor, para que ficasse uma leitura leve. Na época, eu não estava muito convicta, na verdade estava no meio dos meus estudos de etnologia, envolvida com outro tipo de escritura, mais acadêmica, mas a ideia ficou. Hoje, passados quase vinte anos dessa conversa, levo uma vida muito diferente. A sugestão dele começou a fazer sentido. Porque me sinto em paz comigo mesma, quis mostrar àqueles que vão ler o livro o quanto é importante ter sonhos, acreditar neles, mesmo que seja necessário colocar toda nossa energia em sua realização, que foi o que fiz vinte e quatro anos atrás. Enfim, uma razão secundária, mas também importante, é contradizer a todos os que subentenderam que tive sorte na vida e mostrar que tudo o que conquistei foi com determinação e trabalho.

Diana - Conte-nos um pouco sobre o processo de “gestação”

LineimarFoi um longo processo. Desde que a crise atingiu a editora com a qual trabalho, o fluxo de minhas traduções diminuiu sensivelmente. Como acho que o tempo é um bem raro e deve ser aproveitado intensamente, comecei a pensar em como usá-lo de um modo produtivo. Lembrei-me dessa conversa com o tal editor. O mais difícil foi achar o tom e o fio condutor da história.  Ouvi outro dia, num programa literário, alguém dizer que toda história merece ser contada, o mais importante é saber contá-la. Como não sou rica, nem famosa, nem fiz nenhuma grande descoberta revolucionária, teria que encontrar um gancho atrativo que envolvesse o leitor. Havia até pensado em escrever como se fosse meu filho contando minha história depois da minha morte, utilizando o ela no lugar do eu. Mas além de macabro... rsrs, o exercício seria mais complicado. Depois me perguntei que momento seria pertinente para começá-la: na infância, na morte da minha mãe, que foi um novo ponto de partida para mim, na chegada aqui... então me lembrei dessa conversa com meu ex-namorado.  Sem eu perceber, ela me marcou, pois lembro exatamente de tudo, até do rosto dele dizendo isso. Foi mesmo um desafio que ele, sem querer, colocou quando duvidou de mim. E como não podia deixar de ser, “antropologizei” a história, contextualizei as situações para dar uma maior densidade e um interesse sociológico com alguns insights sobre questionamentos pessoais, sobre o determinismo social, sobre o quanto o olhar dos outros pode nos influenciar na vida. Depois que encontrei o tom, foi muito rápido.

Diana – Agora que você já falou da “gestação”, diga-nos como foi o “parto”? ...rss  Foi difícil trazer a obra à luz, publicá-la?

Lineimar Primeiramente, devo admitir publicamente meu mais grave defeito: sou impaciente. Fiz uma carta que enviei a algumas editoras, personalizadas, enviando uma a uma com o nome do responsável pela edição. Como as respostas foram negativas, algumas me dizendo para voltar a contatá-los em dois anos!, decidi usar a autoedição mais uma vez. Já havia publicado um livro assim. É interessante. Meu objetivo é fazer coisas na vida, usar meu cérebro, não concebo ficar de braços cruzados e já não tenho tanta necessidade de reconhecimento. Por isso, a autoedição me convém. Concretizei um projeto, comecei a divulgá-lo, se agradar às pessoas melhor ainda, pois o objetivo é compartilhar o conhecimento, saberes. Mas o essencial foi ter usado meu tempo ocioso fazendo alguma coisa rica e interessante. Nessa forma de publicação somos nós, os autores, que fazemos tudo: a paginação, a capa, decidimos o tamanho etc. É a parte prazerosa do projeto, quando o que esteve durante meses em nossa mente se materializa. A partir de agora, o que vier é lucro.

Diana – Continuando com a metáfora da maternidade, em algum momento o filho tornou-se rebelde, fugiu do controle? Acredito que a escrita, principalmente a autobiográfica, é um exercício revelador que em algum momento pode nos surpreender e trazer à tona coisas que não esperávamos. É isso mesmo?

Lineimar Não sei se considero ter fugido do controle, mas teve um capítulo inteiro no qual falava de meu pai que retirei do livro. Por que era extremamente íntimo e não dizia respeito somente a mim. Acho a história da família dele fantástica, tipicamente brasileira, mas falar da saga familiar envolveria também meus primos, meus tios, irmãos, e não sei se todos estariam dispostos a ter sua história familiar estampada em um livro, publicamente. Teria sido impudente demais.

Diana – “Mulher”, “suburbana”, “dura”, você não deixou que esses rótulos se interpusessem em seu caminho atrás de um sonho. De onde veio tanta obstinação e persistência?

Lineimar Alguma coisa dentro de mim nunca aceitou certas coisas, como o machismo, a discriminação ou a injustiça social. Não sei de onde vem isso, mas nunca consegui conceber que certas coisas devessem ser exclusivas aos que nasceram em berço de ouro, ou com outro sexo, ou em outro país. Não sou fatalista, ao contrário, acredito em nosso poder interno. Também não sou materialista e não ligo para o luxo, mas acho que a cultura deveria ser um direito de todos. E sempre corri atrás dela. Além disso, já fui militante política, já trabalhei no humanitário, tentando reparar um pouco dessas injustiças, mas tive a impressão de dar murro em ponta de faca. Então agi e ajo no meu âmbito pessoal para tentar mudar pelo menos a visão das coisas, que é o que está a meu alcance na vida e na profissão que escolhi.

Diana – O que você diria àqueles que sonham com uma vida nova em outro país, mas não tem recursos financeiros? Você acha que daria para repetir sua façanha nos dias atuais?

LineimarPois é, acho que hoje o mundo não é mais o mesmo. Algumas coisas estão muito mais fáceis, com internet e a democratização dos preços de passagens aéreas, mas outras mais complicadas por causa do terrorismo e do aumento da xenofobia e do racismo no mundo. A Europa está vivendo uma grande contradição ou mesmo uma retrogradação, pois estava caminhando para a abertura das fronteiras com a criação da Comunidade Europeia e o espaço Schengen, mas hoje muitos países que constituem a Comunidade Europeia estão apresentando programas retrógrados com tendência ao fechamento das fronteiras. O Reino Unido acaba de votar por uma saída da Comunidade, outros países como a Grécia já levantaram essa questão. E nos Estados Unidos existe a possibilidade de eleição de um homem abertamente racista e xenófobo como o Donald Trump. Isso tudo atinge o modo como esses países recebem e tratam seus imigrantes. Mas felizmente o mundo não se resume à Europa e aos Estados Unidos, muitos países estão abrindo as portas para estrangeiros, de acordo com suas necessidades de mão de obra, como o Canadá e talvez países asiáticos ou africanos. Não recomendaria fazer como eu fiz, lançar-se assim, na lata, como dizemos no Rio, mas realmente preparar um projeto, aprender o idioma, trabalhar para juntar dinheiro, se informar sobre as leis imigratórias e até fazer uma formação na área carente de mão de obra, por exemplo. Sei que aqui na França, apesar de um altíssimo desemprego, algumas ofertas de emprego não encontram mão de obra, como para servir e lavar louça em restaurantes, cuidados com pessoas idosas. Estão também precisando muito de médicos para morar em pequenas cidades. Já li que algumas cidades oferecem consultório montado para médicos que se disponibilizariam em morar ali. Mas o que é muito importante saber antes de se lançar, é que a probabilidade de descer na pirâmide social é muito grande, quando se emigra para outro país. Eu mesma deixei um cargo de Assistente de Merchandising para fazer faxina e cuidar de crianças. Deve-se ter consciência disso, porque nem sempre é fácil para a autoestima.

Diana – O que os leitores podem esperar de seu livro?

LineimarAcho que uma das coisas positivas que eles podem encontrar nesse livro é o acompanhamento da realização de um projeto que começou do nada e foi tomando forma. Tentei transmitir o processo mental que me motivou a fazê-lo, embora não tenha certeza de ter conseguido. E, evidentemente, o processo material que foi o que desbloqueou na prática todo o resto. Quis mostrar o valor do trabalho, da determinação, da fé em si mesmo. Detesto certa mentalidade de hoje que supervaloriza o dinheiro fácil, a celebridade, o materialismo predominante. Além desse aspecto, os que nunca estiveram na Europa vão aprender um pouquinho sobre alguns países que compõem esse continente, através do meu olhar, é claro, fora dos roteiros turísticos, o olhar de alguém apaixonado pela vida e pelas belas coisas que o mundo tem para mostrar em termos de patrimônio e cultura. Mesmo hoje, quando passeio pela Europa, fico deslumbrada com a beleza e organização deste lugar.

Diana – Para terminar, você está traduzindo seu livro para o francês, como é a experiência de traduzir o próprio livro?

Lineimar - Na verdade vai além de uma tradução. Estou adaptando o texto para o leitor europeu. O posicionamento é totalmente diferente, porque acho que ele não tem ideia do que a Europa representa para a gente, do outro lado do Atlântico. Estou focalizando nas particularidades do Brasil, tem uma ênfase mais sociológica, principalmente quando falo dos anos 1970 aos 1990 quando deixei o país, a ditadura militar e o que tudo isso representava para minha geração, nascida com o golpe de 1964. Enfatizo a questão dos preconceitos contra os suburbanos que, na minha opinião, é muito forte na cidade do Rio de Janeiro. Fiz uma tradução do texto quase literal para usá-la como esqueleto do texto francês, e agora vou transformá-la, deixá-la mais fluida. É claro que, mais ainda que para a versão em português, que você inclusive tornou melhor com suas sugestões, vou precisar de um revisor francófono para corrigi-la. Depois, passará pela crítica exigente do meu marido. 



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