segunda-feira, 21 de março de 2022

Resenha do livro "La guerra del fin del mundo", de Mario Vargas Llosa



Há tempo que eu queria escrever algo para o blog, mas me faltavam tempo e inspiração. Finalmente achei o empurrão que estava precisando quando terminei de ler este livro, tanto que hoje é domingo, 7 horas da manhã, e estou aqui, escrevendo.

La guerra del fin del mundo é uma obra de ficção inspirada num dos acontecimentos mais chocantes e dramáticos da história brasileira: a Guerra de Canudos. Mario Vargas Llosa, escritor peruano, Prêmio Nobel de Literatura, é um dos maiores romancistas e ensaístas da América Latina de sua geração e um dos meus escritores prediletos. Este é o quarto livro que leio dele. Antes, li nesta ordem: La ciudad y los perros, Travesuras de la niña mala e El sueño del celta. O primeiro é um dos meus livros da vida junto com este que acabo de ler.

Nas palavras do próprio Vargas Llosa, ele teria tomado como ponto de partida o “extraordinário” livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, publicado no início do século XX, mais precisamente em 1902. A partir daí, ele se embrenharia em arquivos históricos no Rio de Janeiro e Salvador e, finalmente, peregrinaria pelo sertão da Bahia e do Sergipe, visitando vilas e ouvindo relatos e discussões dos próprios moradores para escrever seu livro.

Embora o autor tenha realizado uma exaustiva pesquisa e tenha incluído alguns personagens reais, como Antônio Conselheiro e grande parte dos personagens militares e políticos, cabe lembrar que se trata de uma obra ficcional em que o conflito de Canudos serve de pano de fundo para o desenvolvimento da trama e das personagens. Algumas personagens como "el Beatito" existiram, mas só o nome é real, sua história de vida é inventada ou inspirada em alguns registros.

Um dos aspectos que torna esta obra magistral é que ela não se limita ao espaço físico e temporal que retrata. Mesmo se baseando em um acontecimento histórico, numa região e período determinados, a obra aborda questões universais e atemporais, como a fé, o amor, a miséria, o idealismo, a justiça, a lealdade, a guerra, entre outros. O conflito de Canudos foi um acontecimento de grande complexidade, uma guerra civil que deixou cicatrizes profundas na história do Brasil.

O conflito de natureza messiânica e religiosa reuniu de um lado um bando de desvalidos, ex-escravos e jagunços liderados pelo beato Antônio Conselheiro e, do outro lado, as forças militares enviadas pelo governo, que via em Canudos uma ameaça à República.

A comunidade de Canudos chegou a reunir cerca de 25 mil flagelados da grande seca de 1877, que fugiam da miséria, da seca, da fome e do desemprego, típicos de uma região tomada por latifúndios improdutivos, que encontraram no líder religioso a promessa da salvação através da devoção após o apocalipse que ele anunciava. O beato via na República a materialização do Anti-Cristo na Terra; e na separação da igreja e do estado, a proximidade do fim do mundo. Considerava que a república representava a luta do poder humano contra o poder divino, via no casamento civil um desagregador de costumes, uma intromissão na lei divina, e pregava contra a cobrança de impostos, pois achava que o dízimo era a única forma correta de contribuição. Assim como também criticava o novo sistema de pesos e medidas e o censo populacional, pois via neles, respectivamente, uma forma de ludibriar o pobre e uma tentativa de restabelecer a escravidão.

As críticas à república alimentaram os boatos, por parte da mídia, de que se tratava de um grupo de revoltosos apoiado por forças estrangeiras disposto a derrubar a república e restabelecer a monarquia. Difundida pela imprensa, essa imagem ganhou o apoio da opinião pública do país para justificar a guerra contra o arraial de Canudos.

Apesar de sua condição de inferioridade, o grupo formado pelos sertanejos e jagunços seguidores do beato conseguiu frustrar três expedições militares, o que inflamou a ira das autoridades e resultou numa quarta incursão que incendiou o arraial, matou grande parte da população e degolou centenas de prisioneiros. Estima-se que morreram por volta de 25 mil pessoas — um verdadeiro massacre.

Quando fiz referência ao caráter universal e atemporal da obra, eu quis dizer que a fronteira entre a ficção e a realidade é muito tênue e até mesmo se desfaz em alguns momentos, basta olharmos para o momento atual para verificar que a imprensa continua manipulando a opinião pública do país e que, mesmo com todas as benesses do progresso, guerras absurdas e desiguais continuam ocorrendo, como é o caso do conflito na Ucrânia.

Não pude deixar de fazer essa conexão. Embora por motivos diversos, ambas guerras se destacam pelo brio e pela dignidade de um povo que, agredido, não hesita em ir à luta e que não aceita a rendição apesar de sua condição de inferioridade. Assim como os sertanejos, os ucranianos estão dispostos e motivados a lutar até o fim.

Literariamente, destaca-se a destreza narrativa do autor onisciente, que, consegue reconstruir os acontecimentos alternando as perspectivas de diversas personagens, como os sertanejos seguidores do beato, os fazendeiros, os militares, o jornalista, os jagunços, os políticos, etc. Isso enriquece o relato, pois apresenta diferentes situações, experiências, crenças e opiniões, para que o leitor extraia suas próprias conclusões.

Abundam personagens memoráveis, tais como Antônio Conselheiro, pregador e líder religioso que consegue a proeza de reunir milhares de seguidores no arraial de Canudos; o Leão de Natuba, o escriba corcunda do conselheiro; o Beatinho, seguidor fiel do conselheiro que ainda criança viu seu sonho de ser sacerdote frustrado por ser um filho bastardo; Maria Quadrado, a filicida de Salvador que peregrinou com um cruz às costas para expiar seu pecado e ficou conhecida como a Mãe dos Homens; Jurema, mulher do rastreador Rufino, violentada por Galileo Gall protetora do anão e do jornalista míope; o trio de aberrações de circo composto pelo anão, a mulher barbuda e o idiota; o jornalista míope, anti-herói e figura caricata que sofria de ataques de espirro e que termina conhecendo o amor em Jurema; Galileo Gall, frenologista, anarquista escocês cujas virtudes revolucionárias vão por terra abaixo quando estupra Jurema, mulher do rastreador Rufino; o Barão de Canabrava, importante fazendeiro da Bahia e um dos políticos mais respeitados da região; João Abade, ex-cangaceiro conhecido como João Satã por sua maldade, comove-se com as pregações do conselheiro e se torna um dos seus mais fiéis seguidores; João Grande, ex-escravo que havia sido condenado a morte por um crime que cometera; Pajeú, que havia sido um dos mais temidos cangaceiros e que tinha uma cicatriz em lugar do nariz; o coronel Moreira César, militar implacável com os inimigos e exigente com os subordinados, sofria de epilepsia, era conhecido como “corta-cabeças” e foi derrotado na 3.ª expedição após ser mortalmente ferido...

Outro aspecto que admiro em Vargas Llosa é sua habilidade para construir belas metáforas, como podemos constatar nos seguintes fragmentos:

Olió, vio, en el aire espeso de la habitación, flotando como pelusas, las palabras de esa larga conversación que, le parecía ahora, había sido, más que un diálogo, un par de monólogos intocables.”

Acho belíssima essa comparação das palavras que pairam na memória como partículas de poeira, penugem, flutuando no ar, além da referência ao sentido do olfato, o jogo entre palavras e sentidos “cheirou... palavras”.

Detrás de los gruesos cristales, como peces en la pecera, los ojos miopes se agitaron, pestañearon.”

E essa comparação dos olhos míopes com peixes agitados num aquário? Não lembra os “olhos de ressaca” de Machado de Assis? Eis a beleza da poesia: a superação do lugar-comum.

Outro trecho do livro que merece destaque é a reflexão do Barão de Canabrava sobre o sofrimento:

Es más fácil imaginar la muerte de una persona que la de cien o mil —murmuró el Barón—. Multiplicado, el sufrimiento se vuelve abstracto. No es fácil conmoverse por cosas abstractas.

Bom, já me estendi demais. Espero ter conseguido despertar seu interesse por este livro!