Quem acompanha meu blog sabe do carinho especial que tenho pelo
livro A Sombra do Vento, o primeiro da série O Cemitério
dos Livros Esquecidos, do escritor Carlos Ruiz Zafón. Por
ocasião da morte do autor há poucos dias, decidi lê-lo novamente, pela terceira
vez, e escrever sobre um dos aspectos que mais contribui para tornar
este livro tão especial — seu caráter metaliterário —, quando uma obra
tematiza a própria literatura.
A Sombra do Vento faz referência a livros, livreiros,
autores malditos, bibliotecas, faz referência à leitura, à escrita, à tradução,
enfim, a esse fascinante universo literário que nos rodeia.
Há menções implícitas, como a de Conan Doyle na investigação
levada a cabo por Daniel Sempere e Fermín Romero de Torres, que, de certa forma,
seguem as pautas de Sherlock Holmes e Watson. Não pude
deixar de notar certa conexão com conto fantástico O homem de areia, do alemão E.T.A
Hoffman, que é considerado por Ítalo
Calvino como uma das produções mais características da narrativa do século XIX. O personagem Laín Coubert, ninguém menos que o diabo, lembra a figura mefistofélica de
Copellius, em O Homem da Areia, que, por sua vez, refere-se à lenda de um homem perverso que, quando as crianças não iam para a cama, jogava areia nos olhos delas, fazendo-os saltar para fora. Ele então
colocava os olhos num saco e os levava para alimentar seus filhos na lua. Essa fixação com os olhos reaparece no livro fictício A casa vermelha do escritor fictício Julián Carax, obra que relatava a atormentada vida de um misterioso indivíduo que assaltava lojas de brinquedos e fantoches para posteriormente arrancar-lhes os olhos e levá-los para sua fantasmagórica casa.
Outra
coincidência é que o nome do primeiro amor
de Daniel Sampere é Clara, assim como a noiva de Natanael, protagonista de O
Homem de Areia.
Também não pude deixar de estabelecer uma relação entre o
misterioso Cemitério dos livros esquecidos e a labiríntica biblioteca do
conto A biblioteca de Babel, do escritor argentino Jorge Luis
Borges.
Além dessas referências implícitas, há menções explícitas a autores e obras como Grandes Esperanças de Charles Dickens e A ilha do
tesouro, de Robert Louis Stevenson, Os irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski, Balzac, Zola, Pablo Neruda, entre outros.
O professor de literatura Monsieur Roquerfort que descobre o romance A casa vermelha, em uma de
suas viagens a Paris para enriquecer seu acervo cultural com as últimas novidades
literárias, visita uma nínfula a quem chama de "Madame
Bobary", em referência à célebre personagem do romance homônimo de Gustave
Flaubert, embora a moça se chamasse Hortense e tivesse certa propensão ao
pelo facial.
Outra referência, quando Julián Carax, que muito cedo descobre o prazer da
leitura, decepciona o pai chapeleiro ao anunciar-lhe, antes de completar os
treze anos, que queria ser alguém chamado Robert Louis Stevenson, o
autor de clássicos, como O médico e o monstro e A ilha do
tesouro. Em outro trecho do livro, quando lhe perguntam se gosta de
livros, o menino responde que sim, e quando lhe perguntam se já leu O coração
das Trevas (de Josef Conrad), ele responde: "— Três vezes".
Quando Daniel Sempere vai passear com o pai e não sossega até que este o leve para contemplar seu objeto de desejo: uma caneta Montblanc
Meisterstück, de série numerada que teria pertencido, segundo o vendedor, a
ninguém menos que Victor Hugo. Um delírio barroco em prata, ouro e milhares
de pequeninos traços, que brilhava como o farol da Alexandria, e do qual nascido
o manuscrito de Os Miseráveis. Secretamente, Daniel estava
convencido de que com aquela maravilha seria possível escrever qualquer coisa,
de romances a enciclopédias e que o que ele escrevesse com aquela caneta poderia
chegar a qualquer lugar, inclusive àquele lugar misterioso para onde sua mãe
tinha ido e do qual nunca mais voltaria.
A relação entre o livreiro Dom Barceló e sua empregada,
Bernarda, quando este a encontra vendendo verduras no mercado do Borne, e, seguindo sua intuição, oferece-lhe emprego dizendo: "— Nossa história será
como o Pigmaleão (obra de George Bernard Shaw), a senhora será
minha Elisa, e eu, seu professor Higgins.", ao que Bernarda responde ofendida:
"— Escute aqui, nós podemos ser pobres e ignorantes, mas somos decentes".
Uma vez empregada na residência de Barceló, Bernarda costuma rezar pelo alma do
patrão, "que tem bom coração, mas que de tanto ler teve os miolos apodrecidos
como Dom Quixote". Sem falar que Fermín, que lembra muito Sancho Pança com seus
refrães espirituosos e sua admirável fidelidade a Daniel Sempere.
Em outro parte do livro, Barceló diz "— É o que eu digo,
como pode haver trabalho? Se em nosso país as pessoas não se aposentam nem
depois da morte. Veja o Cid. Não há solução.", uma referência à
legendária herói espanhol da Reconquista, que passou para a posteridade em El
cantar de mio Cid, poema épico anônimo escrito por volta de 1200.
Em O Jogo do Anjo, a segunda entrega da série O
Cemitério dos Livros Esquecidos, o protagonista-narrador David Martín, é um
escritor maldito, desiludido no amor e na vida profissional e gravemente doente
que encontra o misterioso Andreas Corelli, um estrangeiro que se diz editor de
livros, o qual lhe propõe um trato: a cura de sua doença em troca de um livro para
fundar uma nova religião. Tal trato remete a Fausto, do alemão Goethe,
que no afã de viver sem envelhecer faz um pacto com o diabo. Por sua vez, a
fuga da cadeia de David Martín, fingindo-se de morto, remete ao protagonista de O
conde de Monte Cristo, do romancista francês Alexandre Dumas.
No quarto e último livro da série, O Labirinto dos
Espíritos, o autor faz referência a Alice no País das Maravilhas, do
escritor britânico Lewis Carroll, e traça um paralelo entre o País das
Maravilhas e Barcelona: " — Meu nome é Alicia. — Sabia que o personagem
central da série O labirinto dos espíritos, Ariadna, é uma homenagem a outra
Alicia, a de Lewis Carroll e seu País, neste caso Barcelona, das Maravilhas?
Alicia fingiu surpresa, negando suavemente com a cabeça. — No primeiro volume
da série, Ariadna encontra um livro de encantamentos no sótão do casarão em
Vallvidrera onde mora com seus pais até eles desaparecerem misteriosamente em
uma noite de temporal. Pensando que se conjurasse um espírito das sombras
talvez pudesse encontrá-los, Ariadna abre sem querer um portal entre a
Barcelona real e o seu reverso, um reflexo maldito da cidade. A Cidade dos Espelhos...
No chão, uma fenda se abre aos seus pés, e Ariadna cai por uma interminável
escada em caracol nas trevas até chegar a essa outra Barcelona, o labirinto dos
espíritos, onde é condenada a ficar vagando pelos círculos do inferno que o
Príncipe Escarlate construiu [...]".
Zafón também faz referência ao processo da escrita, mais precisamente aos conceitos de mimese, que se refere à faculdade do homem de reproduzir e imitar a realidade quando diz: "Os livros são espelhos: neles só se vê o que possuímos dentro" e, ainda, à teoria dos espelhos e à das bonecas russas, que se referem ao dialogismo e a intertextualidade, a capacidade de os textos dialogarem com outros textos, as várias histórias dentro da história ou uma narrativa dentro de outra narrativa, quando diz: "À medida que avançava a estrutura do relato, fez-me lembrar daquelas bonecas russas que contêm em si mesmas inúmeras miniaturas. Passo a passo, a narrativa se estilhaçava em mil histórias, como se o relato penetrasse numa galeria de espelhos e sua identidade produzisse dezenas de reflexos díspares e ao mesmo tempo um só.". Por fim, para puxar a sardinha para o nosso lado, destaco a menção ao nosso inestimável ofício na figura da tradutora Nuria Monfort, que traduz do francês e do alemão para o espanhol.