Primeiramente é importante estabelecer a diferença entre
romance histórico e romance de época. O primeiro consiste em uma ficção que tem
como pano de fundo algum acontecimento histórico real, como, por exemplo, as
guerras napoleônicas no romance Guerra e Paz, de Liev Tolstói,
nesse tipo de romance há um compromisso com os fatos históricos. O segundo, por
sua vez, não tem compromisso algum com a realidade, seu foco são os costumes da
sociedade de uma época, como, por exemplo a sociedade carioca do século XIX em Dom
Casmurro, de Machado de Assis.
Para quem tem vontade de conhecer mais a fundo alguns
acontecimentos que marcaram época, os romances históricos são um prato cheio.
Particularmente gosto muito desse tipo de romance porque é como uma viagem no
tempo que nos permite conhecer fatos históricos, sociais e culturais. Diferentemente
dos sisudos livros didáticos, os romances históricos estão carregados de uma
boa dose de emoção e fantasia e por isso são mais fáceis de assimilar.
El sueño del celta
Do escritor peruano Mario Vargas Llosa, é um romance publicado
em 2010, que narra a vida do legendário irlandês Roger Casement, o
primeiro dos europeus a denunciar os horrores do colonialismo no Congo Belga
e, posteriormente, na Amazônia peruana. Duas viagens memoráveis que
mudariam Casement para sempre e que resultariam nos relatórios que abririam os
olhos da sociedade europeia para as atrocidades cometidas contra os nativos
congoleses e os índios peruanos. Ambos foram explorados como mão escrava
para a extração do látex, no auge do comércio da borracha. Ao denunciar os
horrores do colonialismo, Casement se torna simpatizante e ativista da causa irlandesa contra o domínio inglês, o que lhe rende a acusação de traição, afinal ele
trabalhava como diplomata para a coroa inglesa.
A saga começa no Congo em 1903 e termina em uma prisão de
Londres, numa manhã de 1916. Ao ser preso, acusado de traição contra a Inglaterra,
sua vida pessoal é esculhambada com a publicação de uns diários íntimos, que
revelam supostas aventuras homossexuais de veracidade duvidosa, o que lhe valeu
o desprezo de muitos compatriotas, visto que naquela época a homossexualidade era
considerada um crime. Difamado pela opinião pública, corre o risco de ser
executado na forca.
El hereje
Do escritor espanhol Miguel Delibes, é um romance
publicado em 1998, ambientado na Espanha da primeira metade do século XVI, e que
narra a vida de um comerciante de peles, Cipriano Salcedo, cujo nascimento, além
de causar a morte da mãe, coincide com a data em que Martinho Lutero
fixou suas 95 teses na porta da igreja de Wittenber, 31 de outubro de 1517. Essa
coincidência de datas marcaria tragicamente seu destino.
O autor traça um vivo retrato da cidade de Valladolid da
época do rei Carlos I (imperador Carlos V do Sacro Império Romano
Germânico), de uma Espanha que atravessa um período de convulsões políticas e
religiosas. Em termos políticos, aborda a revolta dos comuneros, episódio
em que as comunidades de Castilha se sublevaram contra o rei, porque não
aceitavam que Castilha fosse governada por um estrangeiro, uma vez que Carlos
nascera em Flandres, na Bélgica. Os comuneros queriam que Juana — mãe de Carlos
e filha dos reis católicos Isabel e Fernando —, conhecida como Juana la
loca, assumisse o trono. Ela se encontrava presa no castelo de
Tordesillas desde que fora declarada louca. Mas, quando o levantamento comunero
a libertou e exigiu que ela encabeçasse a revolta, Juana se negou a ir contra o
filho Carlos. Este derrotou os revoltosos e voltou a enclausurar a mãe no
castelo.
Por outro lado, em termos religiosos, havia um conflito
entre a igreja católica e as correntes protestantes e reformistas defendidas
por Lutero e Erasmo de Roterdã, que começavam a se introduzir na
península de forma clandestina. Esta obra também fala do Concílio de Trento,
mediante o qual Carlos I tenta conciliar as diferenças entre católicos e
protestantes, a fim de se engajar na guerra contra os turcos. A Dieta Worms,
também mencionada no livro, foi uma tentativa malograda de resolver a disputa.
Martinho Lutero acusou Roma de exercer tirania e acabou excomungado pelo papa
Leão X.
Mas voltemos ao nosso protagonista Cipriano Salcedo. Acusado
de parricida pelo pai, Cipriano vivia atormentado pela culpa e não conseguia apaziguar
suas inquietudes espirituais na religião católica, até que acaba encontrando
conforto numa fraternidade secreta de protestantes, na qual se torna ativista e
propagador e, como consequência, acaba perseguido pela implacável Inquisição.
Além da questão da turbulência política e religiosa, merece destaque também o caráter
empreendedor de Cipriano que, de comerciante de peles, acaba se tornando um
empresário no mundo da “moda”, ao transformar um rudimentar casaco de pele e lã
usado pelos camponeses em uma peça cobiçada pela alta sociedade.
Largo pétalo de mar
O mais recente romance da escritora chilena Isabel
Allende é uma viagem através da história do século XX. Narra a proeza dos imigrantes
espanhóis republicanos que, em 1939, após a derrota na Guerra Civil e a
vitória do general Franco, travam uma arriscada fuga de Barcelona rumo à França
e, depois de sofrer uma série de privações nos campos de refugiados, vislumbram
uma oportunidade de iniciar uma nova vida no Chile. Isso graças ao poeta chileno
Pablo Neruda que, comovido com a situação dos exilados, se mobiliza para
obter do governo chileno o compromisso de acolher a mais de 2 mil refugiados
espanhóis. Assim, a bordo do navio Winnipeg, fretado pelo poeta, atravessam
o oceano Atlântico rumo ao Chile, “esse largo pétalo de mar y nieve”,
nas palavras de Neruda.
Este foi meu primeiro contato com a literatura de Isabel
Allende e, sem dúvida, pretendo ler mais obras dela em breve, pois foi uma
leitura muito envolvente. Tal como no filme “A casa dos espíritos”, baseado no
seu romance homônimo, a autora revela grande destreza na arte de contar
histórias. Com muita habilidade nos apresenta a vida de duas famílias ao longo
de várias gerações, a maneira como os acontecimentos políticos afetam as vidas
de milhares de pessoas, e as reações individuais diante das adversidades.
Neste
caso, aborda precisamente o período que vai de 1938 a 1994, que abrange a
Guerra Civil espanhola, a Segunda Guerra Mundial e, por fim, o golpe militar no
Chile, em 11 de setembro de 1973. Quando, sob as ordens de Augusto Pinochet, os
militares chilenos derrubaram o governo Salvador Allende. O presidente foi
morto em circunstâncias não esclarecidas e Pinochet instaurou uma ditadura
militar truculenta que se estendeu até 1990.
Embora a obra seja um reflexo de suas próprias experiências
familiares, uma vez que Isabel é sobrinha do presidente chileno deposto pelo
golpe, Salvador Allende, e tendo sido ela mesma uma exilada na Venezuela, como
autora consegue manter certo distanciamento, abstendo-se de emitir juízos
categóricos. Ao menos foi essa minha impressão.
Para finalizar, quando busco uma boa razão para ler os romances históricos, vem-me à mente o argumento de Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos?, isto é, por que não lê-los? Além disso, para exercer o ofício com alguma propriedade, o tradutor deve contar com um conhecimento mínimo da história, cultura, costumes e tradições tanto do país da língua de partida como do país da língua de chegada, assim como uma ampla cultura geral sobre conflitos, geografía, arte, religiões, história, entretenimento, ciências naturais, esportes, etc.
Tal como disse Miguel de Cervantes "Quem lê muito e anda muito, vê muito e sabe muito".