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Lineimar Martins, autora de "Memórias de uma suburbana ‘dura’ que decidiu morar na Europa” |
Diana – Olá, Lineimar! Em primeiro lugar quero agradecer sua
participação e dizer que é um grande prazer tê-la novamente aqui no blog. Para
quem ainda não leu sua entrevista, Lineimar Martins é franco-brasileira,
doutora em antropologia, tradutora de francês e escritora. Aliás, foi esta
última qualidade que motivou a presente entrevista. Ela acaba de publicar seu
livro “Memórias de uma suburbana ‘dura’ que decidiu morar na Europa”. O que a
motivou a querer contar essa história?
Lineimar – Vários fatores me levaram a escrevê-la. Há alguns
anos, recebi o diretor de uma editora brasileira em Lyon, onde morava. Já
naquela época ele havia me sugerido escrever sobre minha decisão de largar tudo
no Brasil e vir para a Europa, sem dinheiro e sem conhecer ninguém aqui,
dizendo que esse assunto poderia interessar a muita gente. Sugeriu também
colocar uma pouco de humor, para que ficasse uma leitura leve. Na época, eu não
estava muito convicta, na verdade estava no meio dos meus estudos de etnologia,
envolvida com outro tipo de escritura, mais acadêmica, mas a ideia ficou. Hoje,
passados quase vinte anos dessa conversa, levo uma vida muito diferente. A
sugestão dele começou a fazer sentido. Porque me sinto em paz comigo mesma, quis
mostrar àqueles que vão ler o livro o quanto é importante ter sonhos, acreditar
neles, mesmo que seja necessário colocar toda nossa energia em sua realização,
que foi o que fiz vinte e quatro anos atrás. Enfim, uma razão secundária, mas
também importante, é contradizer a todos os que subentenderam que tive sorte na
vida e mostrar que tudo o que conquistei foi com determinação e trabalho.
Diana - Conte-nos um pouco sobre o processo de “gestação”
Lineimar – Foi um longo processo. Desde que a crise atingiu
a editora com a qual trabalho, o fluxo de minhas traduções diminuiu
sensivelmente. Como acho que o tempo é um bem raro e deve ser aproveitado
intensamente, comecei a pensar em como usá-lo de um modo produtivo. Lembrei-me
dessa conversa com o tal editor. O mais difícil foi achar o tom e o fio
condutor da história. Ouvi outro dia,
num programa literário, alguém dizer que toda história merece ser contada, o
mais importante é saber contá-la. Como não sou rica, nem famosa, nem fiz
nenhuma grande descoberta revolucionária, teria que encontrar um gancho atrativo que envolvesse o leitor.
Havia até pensado em escrever como se fosse meu filho contando minha história
depois da minha morte, utilizando o ela
no lugar do eu. Mas além de macabro...
rsrs, o exercício seria mais complicado. Depois me perguntei que momento seria
pertinente para começá-la: na infância, na morte da minha mãe, que foi um novo
ponto de partida para mim, na chegada aqui... então me lembrei dessa conversa
com meu ex-namorado. Sem eu perceber,
ela me marcou, pois lembro exatamente de tudo, até do rosto dele dizendo isso.
Foi mesmo um desafio que ele, sem querer, colocou quando duvidou de mim. E como
não podia deixar de ser, “antropologizei” a história, contextualizei as
situações para dar uma maior densidade e um interesse sociológico com alguns insights sobre questionamentos pessoais,
sobre o determinismo social, sobre o quanto o olhar dos outros pode nos
influenciar na vida. Depois que encontrei o tom, foi muito rápido.
Diana – Agora que você já falou da “gestação”, diga-nos como
foi o “parto”? ...rss Foi difícil trazer
a obra à luz, publicá-la?
Lineimar – Primeiramente, devo admitir publicamente meu mais
grave defeito: sou impaciente. Fiz uma carta que enviei a algumas editoras,
personalizadas, enviando uma a uma com o nome do responsável pela edição. Como
as respostas foram negativas, algumas me dizendo para voltar a contatá-los em
dois anos!, decidi usar a autoedição mais uma vez. Já havia publicado um livro
assim. É interessante. Meu objetivo é fazer coisas na vida, usar meu cérebro,
não concebo ficar de braços cruzados e já não tenho tanta necessidade de
reconhecimento. Por isso, a autoedição me convém. Concretizei um projeto,
comecei a divulgá-lo, se agradar às pessoas melhor ainda, pois o objetivo é
compartilhar o conhecimento, saberes. Mas o essencial foi ter usado meu tempo
ocioso fazendo alguma coisa rica e interessante. Nessa forma de publicação somos
nós, os autores, que fazemos tudo: a paginação, a capa, decidimos o tamanho etc.
É a parte prazerosa do projeto, quando o que esteve durante meses em nossa
mente se materializa. A partir de agora, o que vier é lucro.
Diana – Continuando com a metáfora da maternidade, em algum
momento o filho tornou-se rebelde, fugiu do controle? Acredito que a escrita,
principalmente a autobiográfica, é um exercício revelador que em algum momento
pode nos surpreender e trazer à tona coisas que não esperávamos. É isso mesmo?
Lineimar – Não sei se considero ter fugido do controle, mas
teve um capítulo inteiro no qual falava de meu pai que retirei do livro. Por
que era extremamente íntimo e não dizia respeito somente a mim. Acho a história da família dele
fantástica, tipicamente brasileira, mas falar da saga familiar envolveria
também meus primos, meus tios, irmãos, e não sei se todos estariam dispostos a
ter sua história familiar estampada em um livro, publicamente. Teria sido
impudente demais.
Diana – “Mulher”, “suburbana”, “dura”, você não deixou que
esses rótulos se interpusessem em seu caminho atrás de um sonho. De onde veio
tanta obstinação e persistência?
Lineimar – Alguma coisa dentro de mim nunca aceitou certas
coisas, como o machismo, a discriminação ou a injustiça social. Não sei de onde
vem isso, mas nunca consegui conceber que certas coisas devessem ser exclusivas
aos que nasceram em berço de ouro, ou com outro sexo, ou em outro país. Não sou
fatalista, ao contrário, acredito em nosso poder interno. Também não sou
materialista e não ligo para o luxo, mas acho que a cultura deveria ser um
direito de todos. E sempre corri atrás dela. Além disso, já fui militante
política, já trabalhei no humanitário, tentando reparar um pouco dessas
injustiças, mas tive a impressão de dar murro em ponta de faca. Então agi e ajo
no meu âmbito pessoal para tentar mudar pelo menos a visão das coisas, que é o
que está a meu alcance na vida e na profissão que escolhi.
Diana – O que você diria àqueles que sonham com uma vida
nova em outro país, mas não tem recursos financeiros? Você acha que daria para
repetir sua façanha nos dias atuais?
Lineimar – Pois é, acho que hoje o mundo não é mais o mesmo.
Algumas coisas estão muito mais fáceis, com internet e a democratização dos
preços de passagens aéreas, mas outras mais complicadas por causa do terrorismo
e do aumento da xenofobia e do racismo no mundo. A Europa está vivendo uma
grande contradição ou mesmo uma retrogradação, pois estava caminhando para a
abertura das fronteiras com a criação da Comunidade Europeia e o espaço
Schengen, mas hoje muitos países que constituem a Comunidade Europeia estão
apresentando programas retrógrados com tendência ao fechamento das fronteiras.
O Reino Unido acaba de votar por uma saída da Comunidade, outros países como a
Grécia já levantaram essa questão. E nos Estados Unidos existe a possibilidade
de eleição de um homem abertamente racista e xenófobo como o Donald Trump. Isso
tudo atinge o modo como esses países recebem e tratam seus imigrantes. Mas
felizmente o mundo não se resume à Europa e aos Estados Unidos, muitos países
estão abrindo as portas para estrangeiros, de acordo com suas necessidades de
mão de obra, como o Canadá e talvez países asiáticos ou africanos. Não
recomendaria fazer como eu fiz, lançar-se assim, na lata, como dizemos no Rio, mas realmente preparar um projeto,
aprender o idioma, trabalhar para juntar dinheiro, se informar sobre as leis
imigratórias e até fazer uma formação na área carente de mão de obra, por
exemplo. Sei que aqui na França, apesar de um altíssimo desemprego, algumas
ofertas de emprego não encontram mão de obra, como para servir e lavar louça em
restaurantes, cuidados com pessoas idosas. Estão também precisando muito de
médicos para morar em pequenas cidades. Já li que algumas cidades oferecem
consultório montado para médicos que se disponibilizariam em morar ali. Mas o
que é muito importante saber antes de se lançar, é que a probabilidade de
descer na pirâmide social é muito grande, quando se emigra para outro país. Eu
mesma deixei um cargo de Assistente de Merchandising para fazer faxina e cuidar
de crianças. Deve-se ter consciência disso, porque nem sempre é fácil para a
autoestima.
Diana – O que os leitores podem esperar de seu livro?
Lineimar– Acho que uma das coisas positivas que eles podem
encontrar nesse livro é o acompanhamento da realização de um projeto que
começou do nada e foi tomando forma. Tentei transmitir o processo mental que me
motivou a fazê-lo, embora não tenha certeza de ter conseguido. E,
evidentemente, o processo material que foi o que desbloqueou na prática todo o
resto. Quis mostrar o valor do trabalho, da determinação, da fé em si
mesmo. Detesto certa mentalidade de hoje que supervaloriza o dinheiro fácil, a
celebridade, o materialismo predominante. Além desse aspecto, os que nunca
estiveram na Europa vão aprender um pouquinho sobre alguns países que compõem
esse continente, através do meu olhar, é claro, fora dos roteiros turísticos, o
olhar de alguém apaixonado pela vida e pelas belas coisas que o mundo tem para
mostrar em termos de patrimônio e cultura. Mesmo hoje, quando passeio pela
Europa, fico deslumbrada com a beleza e organização deste lugar.
Diana – Para terminar, você está traduzindo seu livro para o
francês, como é a experiência de traduzir o próprio livro?
Lineimar - Na verdade vai além de uma tradução. Estou
adaptando o texto para o leitor europeu. O posicionamento é totalmente
diferente, porque acho que ele não tem ideia do que a Europa representa para a
gente, do outro lado do Atlântico. Estou focalizando nas particularidades do
Brasil, tem uma ênfase mais sociológica, principalmente quando falo dos anos
1970 aos 1990 quando deixei o país, a ditadura militar e o que tudo isso
representava para minha geração, nascida com o golpe de 1964. Enfatizo a
questão dos preconceitos contra os suburbanos que, na minha opinião, é muito
forte na cidade do Rio de Janeiro. Fiz uma tradução do texto quase literal para
usá-la como esqueleto do texto francês, e agora vou transformá-la, deixá-la
mais fluida. É claro que, mais ainda que para a versão em português, que você
inclusive tornou melhor com suas sugestões, vou precisar de um revisor
francófono para corrigi-la. Depois, passará pela crítica exigente do meu
marido.
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