Hoje, como um urso que sai de sua toca após um longo período de hibernação, acordei com uma ideia para um artigo sobre um assunto que me fascina bastante em matéria linguagem: a relação entre texto e imagem.
Lembrei de uma das aulas que mais
marcou minha formação acadêmica. Fazia parte da disciplina Literatura e Cinema;
uma aula que discorreu sobre a relação entre o sentido da visão e a realidade.
Se não me falha a memória, esse era o xis da questão. A professora falava da necessidade de ver para acreditar, de como o cinema recria a realidade e a
transforma ou a deturpa, e dos efeitos que as imagens produzem em nós. Enquanto
o cinema se vale da estética da imagem, a literatura se vale da linguagem, e o
leitor reconstrói, através de sua imaginação, uma imagem visual daquilo que está sendo descrito e narrado. Por isso a leitura é uma experiência tão singular, porque cada leitor
constrói sua imagem particular, enquanto na tela do cinema todos os
espectadores veem a mesma cena.
Naquela ocasião, a aula começou
com um repertório de ditados e provérbios relacionados à visão:
“Vi com esses olhos que a terra há
de comer” e “vi com meus próprios olhos”,
duas frases que dão conta do poder da visão como testemunha inquestionável da
realidade.
Por outro lado, “o que os olhos
não veem o coração não sente”, provérbio geralmente relacionado ao adultério e
que traz a ideia de que enquanto não houver um flagrante de infidelidade haverá
felicidade, que por extensão aplicamos a outras situações, como, por exemplo, à
forma como uma comida é preparada... Se a comida é gostosa, mas a higiene de sua
preparação é duvidosa, usamos essa frase para afirmar que, se não vemos algo
desagradável, não sofremos por isso.
“Olho por olho, dente por dente”,
para transmitir a ideia de vingança, de fazer justiça retribuindo um mal com outro.
“Em terra de cego, quem tem um
olho é rei”, que afirma que num ambiente onde a maioria das pessoas tem
limitações, mesmo uma pequena vantagem pode fazer uma grande diferença.
“Os olhos são a janela da alma”,
significa que os olhos revelam os sentimentos e o caráter de uma pessoa.
Depois desse compilado de frases que
nos mostrou o peso do sentido da visão em nossa cultura, falamos de sua relação
com a percepção da realidade. Lembro que comentei com a professora que eu havia
assistido a um filme espanhol — El orfanato —, um filme de suspense em que
a protagonista tinha visões sobrenaturais, e, num momento dado, uma médium explica:
“No se trata de ver para creer, sino de creer para ver”, que sugere que é preciso estar predisposto para ver além do óbvio.
Ou seja, o que vemos está condicionado a nossas crenças.
Como se tratava de uma disciplina
sobre literatura e cinema, assistimos ao filme Blow-up, dirigido por
Michelangelo Antonioni em 1966, que é uma adaptação do conto Las Babas del
Diablo, escrito por Julio Cortázar em 1959. O protagonista é um
fotógrafo que captura as imagens de um casal discutindo num parque, e, ao revelar
as fotos, percebe algo suspeito e resolve investigar. Tanto o conto como o
filme podem ser interpretados como uma metáfora sobre o poder de congelar
momentos tanto por parte do escritor como do fotógrafo, a relação entre realidade e fantasia, sobre enxergar apenas o que queremos ver. E ainda, sobre como o escritor pode
participar ou intervir nos fatos.
A respeito dessa relação entre texto e imagem, escrevi também aqui no blog uma resenha do filme “Por falar de amor” (em inglês, Words and Pictures), no qual o ator Clive Owen interpreta um desiludido professor de literatura a ponto de perder o emprego, que decide desafiar a professora de arte e pintora, interpretada por Juliette Binoche, a travar uma disputa entre os alunos de ambos para ver quem consegue transmitir um significado maior: as palavras ou as imagens. Para ler essa resenha, clique aqui.
Enfim, a presença do sentido da visão, dos olhos e do olhar é uma constante em nossa cultura, há diversos exemplos, como o da tragédia grega Édipo rei, que culmina com Édipo furando os próprios olhos como punição por não ter conseguido driblar seu destino. Ou o mito da Medusa, uma mulher amaldiçoada da mitologia grega que transformava em pedra todo aquele que olhava diretamente para ela. Temos também o mito da caverna de Platão, que faz uma alegoria à visão além das aparências. O conto de E.T.A. Hoffmann, O homem de areia, uma narrativa fantástica sobre uma figura sinistra que roubava os olhos das crianças que não iam para a cama, história serviu de inspiração para muitas outras criações. Não somente a visão, como também a falta dela são temas presentes na literatura, como é o caso do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. São temas que povoam nosso imaginário e se cristalizam em crenças populares como o mau-olhado ou olho gordo, que atribuem desgraças ao olhar invejoso de alguém, tradicionalmente associado à ideia de “secar com os olhos”. O assunto é inesgotável, mas não posso deixar de citar a sábia frase do nosso querido pequeno príncipe: “O essencial é invisível aos olhos”.
Neste momento, estou relendo Memórias
póstumas de Bras Cubas, e não pude deixar de lembrar de uma das figuras
metafóricas mais bonitas de nossa literatura, em Dom Casmurro, quando
Bentinho se refere ao olhar de Capitu como “esses olhos de ressaca”. Cabe aqui uma anedota... Quando li o livro pela primeira vez, meu português era ainda muito
incipiente, e eu muito nova para a magnitude da obra, o que me levou a pensar nos olhos da
pessoa que está de ressaca pelo consumo excessivo de álcool: a visão dupla e
embaçada, as olheiras em volta dos olhos. Mais tarde, pude captar o verdadeiro
sentido da metáfora: o do olhar com a força do mar que arrasta tudo para si durante
a ressaca. Referindo-se ainda ao olhar de Capitu, o agregado da família de
Bentinho, José Dias, disse: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, ou seja, um olhar malicioso,
enigmático e traiçoeiro.
Quanto a outro assunto que
também me fascina, o léxico, toda essa reflexão despertou minha vontade de compilar
uma lista de adjetivos que qualificam o substantivo “olhar”, para convertê-la em uma nuvem de
palavras. Eis o resultado:
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