quinta-feira, 6 de julho de 2017

Minha primeira experiência com tradução literária - 2ª parte

Há praticamente um mês, publiquei a primeira parte da série “Minha primeira experiência com tradução literária” — experiência essa que eu pretendia descrever da forma mais profissional e objetiva possível; mas, como não poderia deixar de ser, o resultado foi o oposto, o mais subjetivo, descontrolado e sincero possível. Recapitulando: junho de 2016 > férias com a família > parque aquático > tobogã “Insano” > proposta para fazer um teste de tradução literária > realização do teste > ataque de nervos > aprovação no teste!

Quando soube que traduziria literatura infantojuvenil, confesso que pensei “ah, que bom, literatura infantojuvenil deve ser mais fácil que literatura adulta”. Ledo engano! Logo vi como havia sido ingênua. Já no teste, pude sentir o gostinho do que estava por vir. Logo nas primeiras páginas, surgiram as primeiras dúvidas, “e agora, como traduzo ‘mamá’?”. Por minha própria experiência como mãe de dois adolescentes meninos não costumo ouvir “ma-mãe”. No norte do país, sim, ouve-se muito “mamãe”, “vovó” e “titia” e na música do Titãs, mas fora isso, é uma forma regional ou infantil, por isso, optei por “mãe”. Somente para ilustrar, essa foi uma das dúvidas mais simplórias, logo vieram outras mais tensas que comentarei mais adiante.

Uma vez superada a adrenalina inicial do teste e a estupefação de ver um sonho tornar-se realidade, veio a parte prática: a parte em que arregaçamos as mangas e colocamos as mãos na massa.

O primeiro livro que traduzi do espanhol para o português para a Editora Edebê foi La nueva vida del señor Rutin (A nova vida do senhor Rutin). 

Minha primeira atitude foi procurar informação a respeito de David Nel.lo, o autor. Soube que é um escritor e músico catalão, de Barcelona, que já conquistou vários prêmios como autor de obras infantojuvenis. 

O livro em questão recebeu o Prêmio Edebé de Literatura Infantil. A seguir fui saber do senhor Rutin... o senhor Rutin é sueco, nasceu em Visby, na ilha de Gotland, é claro que eu fui procurar imagens e informação sobre Visby e constatei que é uma cidade com aspecto medieval, cercada de muralhas de pedra e repleta de chalés e canteiros de flores, um encanto de cidade! E então fiquei sabendo que o escritor passou uma temporada no Centro de Escritores e Tradutores de Visby e, a seguir, uma temporada no Centro Internacional de Escritores e Tradutores na ilha de Rodas, na Grécia. Assim, nas palavras dele, a Suécia foi a fonte de inspiração do livro e a Grécia o laboratório onde foi escrito.
Visby, na ilha de Gotland (Suécia)

Essa pesquisa serviu para ambientar-me no livro, mergulhar em sua atmosfera e estabelecer conexões. Realizada essa primeira pesquisa, senti-me mais preparada para encarar o desafio.

Acho que todo o mundo se pergunta se o tradutor lê o livro antes de traduzi-lo, no mundo ideal seria legal poder fazer isso; porém, no mundo real, precisamos cumprir prazos e não há tempo para fazer uma leitura prévia à tradução. Assim, fui lendo e traduzindo, e sentindo o prazer de acompanhar a história paralelamente à tradução, sem spoilers, o que é muito prazeroso, você se envolve com a história e vai dormir desejando saber o que vai acontecer no próximo capítulo.

Mas vamos aos aspectos linguísticos e tradutórios... uma coisa que tirava meu sono no início era a dicotomia entre coloquialismo e língua formal. Como profissionais da área de línguas e comunicação, acho que devemos zelar sempre pela norma, por outro lado, para que a comunicação seja eficiente, precisamos considerar o público alvo e o a função do texto com o qual estamos lidando. No texto literário prevalece a função poética, isto é, a ênfase recai no próprio texto, na forma como se dizem as coisas, o texto literário é um objeto estético. Vieram à tona algumas questões vistas na faculdade sobre estrangeirização e domesticação, fidelidade, correspondências, etc. Nesse sentido, ajudou-me bastante o livro de Paulo Henriques Britto, A Tradução Literária, com cuja ideologia me identifico, uma frase dele que representa bem seu pensamento é a seguinte:

“Quando leio um romance de Dostoievski em português, quero encontrar no texto uma série de marcas que a assinalem como uma obra russa —  as distâncias expressas em verstas, as quantias expressas em rublos e copeques, os personagens tratando-se por primeiro nome e patrônimo ou por diminutivos de segundo ou terceiro grau —  e como uma obra de Dostoievski —  com a pluralidade de vozes, a intensidade emocional, até mesmos os excessos de veemência que alguns críticos apontam na obra do autor. Mas quero, ao mesmo tempo, que o texto em português seja de algum modo uma apresentação, uma versão de Dostoievski, e não um comentário, uma paródia, uma glosa do romance original. Em suma: uma tradução que respeite o que há de estrangeiro, e de estranho, no original, proporcionando-me a ilusão de que estou lendo uma obra de Dostoievski, mas que seja também um romance em português, e não uma peça metalinguística — e portanto um não-romance — construída sobre o texto de Dostoievski.”

Outro tradutor em quem me inspiro e com cujos pensamentos me identifico é Carlos Nougué, ele foi meu professor, e não me esqueço de suas palavras quando dizia que o tradutor deve ter uma fidelidade canina para com o original. 

Mas voltando à questão entre a norma e a coloquialidade, compreendi que, em se tratando de literatura, não há uma luta entre o bem e o mal, os dois conceitos são complementares e essenciais. Para uma tradução bem-sucedida de diálogos e de texto narrativo, é fundamental o conceito da verossimilhança, ou seja, a sensação de que aquilo que estamos lendo é real e de que os personagens de fato estão “falando”. Para conseguir esse efeito, precisamos reproduzir a distância entre a língua escrita e a língua falada, com todos os desvios e vícios que esta última carrega, precisamos sair da nossa zona de conforto e usar a criatividade, num esforço constante para encontrar a medida certa, somos obrigados o tempo todo a tomar decisões e a fazer escolhas. A tal visibilidade do tradutor, em minha opinião, resume-se a isso: suas escolhas.

Deixando a paranoia teórica um pouco de lado, como complexidade pouca é bobagem, tinha de haver uma dificuldade extra para a empresa ficar mais desafiante, foi então que o senhor Rutin decidiu que sua rotina metódica e regrada estava tornando-se monótona e resolveu se autoimpor um desafio de ordem linguística que revolucionaria seu modo de falar. O que mais poderia ser? Nada de mais, só para zoar um pouco com a pobre da tradutora...

Ai, que saudades dessa história querida! Pois é, nem só de dificuldades vivem os tradutores, esse foi sem dúvida o trabalho mais gratificante que já realizei, se é que pode chamar-se trabalho. Além do prazer de traduzir, pude sentir o gostinho de voltar a esse lugar lindo e inspirador chamado infância.

Espero vocês na terceira parte da saga, até lá!

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