quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O mel silvestre

O mel silvestre
Horacio Quiroga


Tradução: Renata C.B. Moreno.
Conto extraído da antologia “Cuentos de amor locura y de muerte”, publicada em 1917.





Tenho em Salto Oriental dois primos, hoje homens já, que aos seus doze anos, e em consequência de profundas leituras de Júlio Verne, deram na rica empreitada de abandonar sua casa para ir viver no monte. Este fica a duas léguas da cidade. Ali viveriam primitivamente da caça e pesca. Verdade é que os dois meninos não tinham lembrado, particularmente, de levar espingardas nem anzóis; mas, de qualquer maneira, o bosque estava ali, com sua liberdade como fonte de felicidade, e seus perigos como encanto.


Desgraçadamente, no segundo dia foram achados por quem os buscava. Estavam bastante atônitos ainda, bem fracos, e para grande assombro de seus irmãos menores – iniciados também em Júlio Verne – sabiam ainda andar em dois pés e recordavam como falar.

A aventura dos dois ermitões, no entanto, seria talvez mais formal se tivessem tido como teatro outro bosque menos domingueiro. As escapadelas levam aqui a limites imprevistos em Misiones, e o orgulho de suas stromboot[I1  arrastou Gabriel Benincasa a esses limites.

Benincasa, tendo concluído seus estudos de contadoria pública, sentiu fulminante desejo de conhecer a vida na selva. Não foi arrastado por seu temperamento, pois antes Benincasa era um rapaz pacífico, gorducho e de cara rosada, em razão de sua excelente saúde. Em consequência, sensato o suficiente para preferir um chá com leite e bolinhos a quem sabe que fortuita e infernal comida do bosque. Mas assim como o solteiro que foi sempre ajuizado  crê no seu dever de, à véspera de seu casamento,  despedir-se da vida livre com uma noite de orgia em companhia de seus amigos, de igual modo Benincasa quis honrar sua vida engrenada com dois ou três choques de vida intensa. E por este motivo subia o Paraná até uma obrage, com suas famosas stromboot.

Mal saído de Corrientes havia calçado suas robustas botas, pois os jacarés da margem esquentavam já na paisagem. Mas apesar disso o contador público cuidava muito de seu calçado, evitando arranhões e  contatos sujos.

Deste modo chegou à obrage de seu padrinho, que na hora teve  que conter os impulsos         de seu sobrinho.

– Aonde vai agora? – tinha perguntado surpreendido.

– Ao monte; quero percorrê-lo um pouco – respondeu Benincasa, que acabava de  pendurar a winchester no ombro.

–Mas, infeliz! Não vai poder dar um passo. Segue a trilha, se quiser... Ou melhor, deixa essa arma, e amanhã mandarei um peão te acompanhar.

Benincasa renunciou ao seu passeio. Contudo, foi até a margem do bosque e se deteve. Tentou vagamente um passo adentro, e ficou quieto. Meteu as mãos nos bolsos e olhou detidamente aquele inextricável emaranhado, assobiando fracamente trechos incompletos. Após observar de novo o bosque de um lado ao outro, retornou bastante desiludido.

No dia seguinte, no entanto, percorreu a trilha central por cerca  de uma légua, e ainda que seu fuzil voltasse profundamente dormido, Benincasa não lamentou o passeio. As feras chegariam pouco a pouco.

Estas chegaram  na segunda noite, ainda que de um modo  um pouco singular.

Benincasa dormia profundamente, quando foi acordado por seu padrinho.

–Ei, dorminhoco! Levanta que vão te comer vivo.

Benincasa se sentou bruscamente na cama, alucinado pela luz dos três lampiões de vento que se moviam de um lado a outro no quarto. Seu padrinho e dois peões regavam o andar.

– O que foi, o que foi? –perguntou, jogando-se ao chão.

–Nada... Cuidado com os pés... A correição.

Benincasa já tinha   se inteirado das curiosas formigas a que chamamos correição. São pequenas, negras, brilhantes e marcham velozmente em rios mais ou menos largos. São essencialmente carnívoras. Avançam devorando tudo que encontram pelo caminho: aranhas, grilos, escorpiões, sapos, víboras, e todo ser que não pode lhes resistir. Não há animal, por grande e forte que seja, que não fuja delas. Sua entrada em uma casa supõe a exterminação absoluta de todo ser vivo, pois não há rincão nem buraco profundo onde não se precipite o rio devorador. Os cães uivam, os bois mugem, e é forçoso abandonar a casa, em troca de ser roído em dez horas até o esqueleto. Permanecem no lugar um, dois, até cinco dias, segundo sua riqueza em insetos, carne ou gordura. Uma vez devorado tudo, se vão.

Mas não resistem à creolina ou droga similar; e como na obrage havia muita creolina, em menos de uma hora o chalé ficou livre da correição.

Benincasa observava muito de perto, nos pés, a placa lívida de uma mordida.

– Picam muito forte, realmente! – disse surpreendido, levantando a cabeça para seu padrinho.

Este, para quem a observação não tinha já nenhum valor, não respondeu, felicitando-se, em compensação, de ter contido a tempo a invasão. Benincasa retomou o sono, ainda que sobressaltado toda a noite por pesadelos tropicais.

No dia seguinte foi ao monte, desta vez com um facão, pois tinha acabado de compreender que tal utensílio lhe seria bem mais útil no monte que a espingarda. É verdade que seu pulso não era maravilhoso, e sua pontaria muito menos. Mas, de qualquer maneira, conseguia quebrar os ramos, açoitar a cara e cortar as botas; tudo em um.

O monte crepuscular e silencioso o cansou cedo. Dava-lhe a impressão - exata por demais – de um cenário visto de dia. Da agitada vida tropical não há a essa hora mais que o teatro gelado; nem um animal, nem um pássaro, nem um ruído quase. Benincasa voltava quando um surdo zumbido lhe chamou a atenção. A dez metros dele, em um tronco oco, diminutas abelhas aureolavam a entrada do buraco. Se aproximou com cautela e viu no fundo da abertura dez ou doze bolas escuras do tamanho de um ovo.

– Isso é mel – disse o contador público com íntima gula - Devem ser bolsinhas de cera, cheias de mel...

Mas entre ele, Benincasa, e as bolsinhas, estavam as abelhas. Após um momento de descanso, pensou em fogo: levantaria uma boa fumaceira. A sorte quis que enquanto o ladrão se aproximava cautelosamente da folharada úmida, quatro ou cinco abelhas pousassem em sua mão, sem o picar. Benincasa logo apanhou uma  e,  oprimindo seu abdômen, constatou que não tinha ferrão. Sua saliva, já leve, se purificou em melífica abundância. Maravilhosos e bons animaizinhos!

Em um instante o contador desprendeu as bolsinhas de cera, e afastando-se um bom trecho para escapar do pegajoso contato das abelhas, se sentou em uma grande raiz. Das doze bolas, sete continham pólen. Mas as restantes estavam cheias de mel, um mel escuro, de sombria transparência, que Benincasa saboreou gulosamente. Tinha um gosto distinto. De quê? O contador não pôde explicar. Talvez resina de frutas ou de eucalipto. E por igual motivo,  o denso mel tinha um vago sabor áspero. Mas, em compensação, que perfume!

Benincasa, uma vez bem seguro de que só cinco bolsinhas lhe seriam úteis, começou. Sua ideia era singela: colocar o favo gotejante suspenso sobre sua boca. Mas como o mel era espesso, teve que aumentar o buraco, depois de ter permanecido meio minuto com a boca inutilmente aberta. Então o mel surgiu, afinando-se em pesado fio até a língua do contador.

Um depois do outro, os cinco favos se esvaziaram assim, dentro da boca de Benincasa. Foi inútil que ele prolongasse a suspensão, e muito mais que repassasse os balões exaustos; teve que resignar-se.

Enquanto isso, a sustentada posição da cabeça ao alto tinha-o enjoado um pouco. Pesado de mel, quieto e os olhos bem abertos, Benincasa considerou de novo o monte crepuscular. As árvores e o solo tomavam posturas por demais oblíquas, e sua cabeça acompanhava o vaivém da paisagem.

– Que enjoo curioso... – pensou o contador. - E o pior é...

Ao levantar-se e tentar dar um passo, se viu obrigado a cair de novo sobre o tronco. Sentia seu corpo de chumbo, sobretudo as pernas, como se estivessem imensamente inchadas. E os pés e as mãos formigavam.

– É muito estranho, muito estranho, muito estranho! – repetiu estupidamente Benincasa, sem suspeitar, no entanto, do motivo dessa estranheza - Como se tivesse formigas... A correição – concluiu.

E de repente a respiração se cortou seca, de espanto.

– Deve de ser o mel...! É venenoso...! Estou envenenado!

E num segundo esforço para levantar-se, seu cabelo arrepiou-se de terror: não podia nem se mover. Agora a sensação de chumbo e o formigamento subiam até a cintura. Durante um tempo o horror de morrer ali, miseravelmente só, longe de sua mãe e seus amigos, lhe coibiu todo meio de defesa.

– Vou morrer agora...! Daqui a pouco vou morrer...! Já não posso mover a mão...!

Em seu pânico constatou, no entanto, que não tinha febre nem ardor de garganta, e o coração e pulmões conservavam seu ritmo normal. Sua angústia mudou de forma.

– Estou paralítico, é a paralisia! E não vão me encontrar...

Mas uma visível sonolência começava a apoderar-se dele, deixando-lhe íntegras suas faculdades, ao mesmo tempo em que o enjoo  acelerava. Assim, pensou notar que o solo oscilante ficava negro e se agitava vertiginosamente. Outra vez veio à sua memória a lembrança da correição, e em seu pensamento se fixou como uma suprema angústia a possibilidade de que esse negror que invadia o solo...

Teve ainda forças para se arrancar desse último espanto, e de repente lançou um grito, um verdadeiro alarido em que a voz do homem recupera a tonalidade do menino aterrorizado: por suas pernas subiam um precipitado rio de formigas negras. Ao redor dele a correição devoradora escurecia o solo, e o contador sentiu por baixo da cueca o rio de formigas carnívoras que subiam.

Seu padrinho achou-o finalmente, dois dias depois, e sem a menor partícula de carne, o esqueleto coberto pela roupa de Benincasa. A correição que vagava ainda por ali e as bolsinhas de cera o esclareceram suficientemente.

Não é comum que o mel silvestre tenha essas propriedades narcóticas ou paralisantes, mas pode acontecer. As flores com igual caráter abundam no trópico, e já o sabor do mel denuncia na maioria dos casos sua condição – tal como deixou a resina de eucalipto que Benincasa achou sentir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário