sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O taxidermista



Autora: Diana Margarita


Enquanto caminhava pelo bosque coberto de neve, escrutinando cada detalhe da paisagem: observando insetos e animais, arrancando musgos, recolhendo gravetos, pedregulhos, rochas e tudo que pudesse ajudá-lo a compor um novo trabalho, o doutor Fausto imaginava qual seria sua próxima realização. O empalhamento do diabo-da-tasmânia, na primavera, rendera-lhe um bom dinheiro, além de reconhecimento e fama. Vários museus o procuraram para agendar uma consultoria, isso o ajudava a se resignar da frustração por não ter formado uma família.

A profissão extremamente minuciosa exigia-lhe horas a fio de estudo e dedicação. Foi por isso que decidira se mudar para a floresta, onde o contato com a natureza servia de inspiração e o ajudava a manter o equilíbrio mental.


Finalmente, após longos anos de solidão e esquecimento, alcançara a almejada posição entre os mais respeitados e renomados taxidermistas. Ansiava por iniciar seu próximo trabalho. Foi então que, perdido em seus pensamentos, sentiu que havia pisado em alguma coisa. Agachou-se para ver o que era e encontrou o cadáver de um corvo parcialmente coberto pela neve. Removeu-o com cuidado, enquanto balançava a cabeça negativamente. O estado da ave era lastimável: magra, as penas ralas e opacas. Pensou em deixá-la ali mesmo, mas o desafio de lhe devolver a aparência que a ave tivera em vida o convenceu a levá-la para casa.


Mais tarde na cabana, enquanto ouvia Bach e sorvia uma sopa, examinava o corpo deitado sobre uma folha de jornal. Nesse momento sentiu certa soberba, ao saber que tinha o poder de devolver ao corpo inerte um sopro de vida e de conservar-lhe a aparência por toda a eternidade.


Abriu sua maleta e retirou um pequeno bisturi. Colocou a ave sobre a prancha com o ventre voltado para cima, ajeitou as penas e lentamente, pressionou o bisturi contra a carne até abrir uma incisão por onde retirou as vísceras. O sangue do animal já estava coagulado devido ao frio, o que facilitou sobremaneira o trabalho.


Uma vez que retirou as entranhas, virou a ave do avesso e começou o esfolamento, desprendendo a pele do corpo, voltando-se para os membros inferiores, indo até a coxa, a qual descarnou e procedeu à desarticulação. Minuciosamente, foi desprendendo a pele parte por parte, chegando às asas, até atingir o crânio e retirar os miolos da caixa craniana por meio de um grosso arame.


Subitamente, o cientista sentiu uma dor aguda no estômago e uma pressão na cabeça que o fez cambalear, começou a tossir e se engasgou com a própria saliva. Ao recuperar o fôlego, passou o pó arsenical sobre a pele da ave, para conservá-la. Já eram duas da manhã, e o doutor tremia de frio, encostou a mão na face e percebeu que estava com febre. Deixou a ave sobre a prancha e foi dormir.


A noite foi longa, virou-se inúmeras vezes de um lado para o outro, sentindo fortes cólicas intestinais, tremores e dores de cabeça. Pesadelos e alucinações o atormentaram a noite toda. Quando finalmente a luz do sol penetrou pelas frestas da persiana, levantou-se com dificuldade; o corpo lhe doía, parecia que havia levado uma surra.


Espantou-se ao ver sua imagem refletida no espelho: a pele amarelada e opaca, os olhos fundos e injetados, rodeados por profundas olheiras, começou a tossir convulsivamente. Retomou o fôlego e voltou ao trabalho — estava ficando muito bom. 

Procurou a palha de madeira e o arame para dar forma ao corpo antes de empalhá-lo. Passou dias ocupado na montagem da armação de arame, preenchendo o corpo da ave para dar maior firmeza aos membros. Com auxílio de uma haste, encheu-o com palha de madeira até completar o corpo todo enquanto ouvia Chopin.


De repente sentiu o corpo enrijecer, caiu ao chão e uma convulsão o sacudiu por completo até que perdeu os sentidos. Acordou de madrugada, fraco e tonto com uma sensação de embriaguez. Arrastou-se até a cama e caiu no sono.


Duas semanas mais tarde, olhava estupefato para o o corvo imponente em sua armadura de arame, exibindo um semblante altivo e forte. As penas estavam cheias e reluzentes. O aspecto era sublime. O doutor foi até o banheiro para lavar-se e teve um sobressalto ao ver o rosto coberto de manchas e pústulas, deveria ser impressão sua, mas o cabelo estava mais grisalho que de costume.


Quanto mais viçosa a ave ficava, mais se deteriorava o corpo do doutor.


Preparou uma xícara de café com leite e retornou à ave. Costurou o ventre, inseriu as próteses de vidro nas cavidades orbitais, endireitou as penas, deu duas demãos de verniz transparente e retocou o bico com tinta da mesma cor. Fixou o corvo sobre um galho e este sobre uma base de madeira envernizada, esmerando-se no acabamento, a fim de realçar a beleza da peça. 

O doutor não continha a satisfação: a posição da ave lhe dava um aspecto natural perfeito, o brilho dos olhos... Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Foi dormir satisfeito, apesar do mal-estar e da febre.


No meio da noite, começou a ter alucinações: o grasnido de um corvo ecoava em seu ouvido, a ave revoava pelo quarto, batia-lhe com as asas na cara; um calor tomou conta de seu corpo, uma dor aguda, as garras do animal rasgavam-lhe a pele; a ave furiosa bicava-lhe as vísceras. Eleonora, a única mulher que amara de verdade, ria alto e perguntava "Quando é que esse coração mumificado vai amar novamente?… Nunca mais, nunca mais" - sussurrava em seu ouvido. O corpo do doutor despencou no vazio e caiu numa enorme caixa cheia de pó de arsênio, sentiu a garganta secar, sua pele ardia e rasgava-se de tão esturrada, quis gritar, mas a língua seca não respondia a seus comandos...


Dias depois, um policial que verificava a denúncia de desaparecimento do taxidermista, arrombou a porta da cabana e encontrou o corpo dessecado, o ventre aberto e oco. As cavidades oculares vazias: aparentemente um animal lhe havia devorado as córneas.

Um comentário: