quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A casa de Asterião – Jorge Luis Borges

Tradução: Diana Margarita


E a rainha deu a luz um filho que se chamou Asterião.

Apolodoro: Biblioteca, III,I



Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que eu castigarei a seu devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito)1 estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará pompas femininas aqui nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Igualmente encontrará uma casa como não há outra na face da Terra. (Mentem os que declaram que no Egito há uma parecida.) Até meus detratores admitem que não há uma única mobília na casa. Outra espécie ridícula é que eu, Asterião, sou um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não há uma fechadura? Além disso, algum entardecer pisei a rua; se antes da noite voltei, o fiz pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e aplanados, como a mão aberta. Já se havia posto o Sol, mas o desvalido pranto de uma criança e as toscas súplicas da congregação disseram que me haviam reconhecido. As pessoas oravam, fugiam, prosternavam-se; uns subiam à estilóbata do templo dos Machados, outros juntavam pedras. Algum, creio, ocultou-se sob o mar. Não em vão foi uma rainha minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo; embora minha modéstia o deseje.



O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não têm cabida em meu espírito, que está capacitado para o grande; jamais retive a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes deploro isso porque as noites e os dias são longos.



Claro que não me faltam distrações. Semelhante ao carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até o chão rodar, tonto. Escondo-me à sombra de uma cisterna ou à volta de um corredor e faço de conta que me buscam. Há terraços dos quais me deixo cair, até ficar ensanguentado. A qualquer hora posso fazer de conta que durmo, com os olhos fechados e a respiração poderosa. (Às vezes adormeço realmente, às vezes está mudada a cor do dia quando abro os olhos). Mas entre tantas brincadeiras a que eu prefiro é a do outro Asterião. Finjo que vem me visitar e que lhe mostro a casa. Com grandes reverências digo-lhe: Agora voltamos à encruzilhada anterior ou Agora desembocamos em outro pátio ou Bem dizia eu que você gostaria do desaguadouro ou Agora você vai ver uma cisterna que se encheu de areia ou Já vai ver como o porão se bifurca. Às vezes me engano e rimos facilmente os dois.



Não só tenho imaginado essas brincadeiras; também tenho meditado sobre a casa. Todas as partes da casa estão muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, uma manjedoura; são catorze (são infinitos) as manjedouras, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. No entanto, à força de fatigar pátios com uma cisterna e empoeiradas galerias de pedra cinza alcancei a rua e vi o templo dos Machados e o mar. Isso não o entendi até que uma visão da noite me revelou que também são catorze (são infinitos) os mares e os templos. Tudo está muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem estar uma só vez: acima, o intrincado Sol; abaixo, Asterião. Talvez eu tenha criado as estrelas e o Sol e a enorme casa, mas já não me lembro.



A cada nove anos entram na casa nove homens para que eu os livre de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para buscá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um atrás do outro caem sem que eu ensanguente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem são, mas sei que um deles profetizou, na hora de sua morte, que, alguma vez chegaria meu redentor. Desde então não me dói a solidão, porque sei que vive meu redentor e ao final se erguerá sobre a poeira. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Tomara que me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?



O Sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não resta nem um vestígio de sangue.



— Você acreditará nisso, Ariadna? — disse Teseu — O minotauro mal se defendeu.



1. No original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que na boca de Asterião, esse adjetivo numeral vale por infinitos.

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